Matheus Nachtergaele em cena de 'A serpente', baseado na última peça de Nelson Rodrigues - Jura Filmes / Divulgação
Matheus Nachtergaele em cena de 'A serpente', baseado na última peça de Nelson RodriguesJura Filmes / Divulgação
Por THIAGO ANTUNES
Rio - O ofício de fazer arte carrega, em seu cerne, motivações questionadoras e de enfrentamentos. Filmes, seriados, livros, peças de teatro e outras formas de fruição podem conter elementos que mudam a vida de quem assiste. Para o ator Matheus Nachtergaele, que acredita na arte como vetor de mudança, esse espaço também é o mesmo da inquietude. Com projetos no cinema e na TV, Matheus estreia na semana que vem, em apenas três salas no país, o filme 'A serpente', de Jura Capela, baseado na última peça do dramaturgo Nelson Rodrigues. No longa, ele contracena com a atriz Lucélia Santos, "a atriz que me fez ator", destaca.
Nachtergaele conversou com O DIA sobre o filme de Rodrigues, sua carreira e seus recentes papeis na televisão, onde encara dois personagens extremos em seriados da TV Globo: o malandro Olegário de 'Cine Hollyúdi' e o cruel Pacheco de 'Filhos da pátria'. 
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O DIA - Como você percebe obra de Nelson Rodrigues?

Matheus - Como ator brasileiro, tenho que entender o tamanho e significado dessa obra. Acho o Nelson um dos maiores dramaturgos do mudo, junto com o (Ariano) Suassuna. Eu me debrucei nas coisas delas a vida toda. Minha primeira experiência teatral, nos anos 80, aconteceu nesse contexto. O Antunes Filho, um dos grandes diretores de teatro que tivemos, me levou para a montagem de 'Paraíso Zona Norte', a peça definitiva sobre Nelson no teatro, porque o Antunes queria levar o Nelson à categoria de trágico e fez isso.
Ele montava 'A falecida' e 'Os sete gatinhos' e entrei nesse contato teatral pela primeira vez em algo do Nelson Rodrigues, eu tinha 18 anos, não sabia se queria ser ator, e o Antunes considerou que eu era muito novo e me passou para outro projeto. Mas ficou essa marca e nunca mais fiz, a não ser em alguns exercícios quando voltei para a faculdade de Artes Plásticas e aí percebi que queria ser ator. Na faculdade, fiz uma cena ou outra mas nunca fiz filmes ou peças do Nelson profissionalmente. Fiquei com essa experiência e, finalmente, aconteceu em 2016 quando filmamos a 'A serpente', onde tive a oportunidade de retomar meu desejo de fazê-lo e trabalhar com a atriz que me fez ser ator, antes de tudo.
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Como foi o trabalho com a Lucélia Santos? 
Eu tinha 8 anos e ela fazia a novela 'Escrava Isaura' e desde então comecei a imaginar que poderia ser ator. Foi a primeira vez que me interessei por uma novela. Como atriz, a Lucélia não ficou presa no papel da mocinha, ela foi protagonizando aos poucos. E há uma coisa forte ali, muitos sentimentos, como um teor sexual forte, que depois ela mostrou nos filmes do Nelson Rodrigues. Ele dizia isso com todas as letras, então eu posso dizer: a Lucélia era a atriz preferida dele. Ele a chamava de "animal cênico", porque ela faz tanto a mãe, e tão bem, quanto a prostituta que encarna a coisa da violência sexual. 
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A Lucélia também não se rendeu ao sistema de mercado, ela deu uma retirada de cena, não faz cinema televisão...pelo menos não de uma maneira não divisível. Além disso, ela tem essa coisa da estar no teatro como um espaço de resistência e agora num filme pequeno, uma grande homenagem ao Nelson. Sinto que o Jura Capela também deu um grande presente a ela, com a possibilidade dela fazer duas irmãs em 'A serpente'. Enfim, algo maravilhoso que mal sei mensurar.

Fale sobre seu personagem no filme.
Foi um desafio, porque sou sempre mais o vilão o ou palhaço...o João Grilo, o travesti, o assassino... é difícil me chamarem para ser "herói romântico". Vejo o Paulo como uma personagem trágico. Ele é oferecido como um símbolo masculino de uma irmã para a outra, se vê no jogo delas e acaba virando um menino assassino. É muito bonito que o Jura tenha me confiado essa missão e à Lucélia. Toda a produção, com todas as dificuldades de um filme de baixo orçamento...para realmente uma linda homenagem ao Nelson. Sem falar que esta é a última peça escrita por ele, quase como um casulo para uma borboleta.
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Alguma obra no repertório do Nelson Rodrigues que te marque?

Não saberia te dizer de cara. Eu tenho uma loucura especial pela 'A falecida' e pelo 'Álbum de família', inclusive seria uma peça que eu produziria. Mas é muito curioso que eu esteja fascinado por 'A serpente', porque parece que resume toda a potência do Nelson. A trama é o texto puro dele: um gesto que aparentemente é generoso, mas altamente perverso. É tudo trágico, picante e patético, enfim, Nelson (ri). Recomendo ver 'A serpente' no cinema. A fotografia em preto e branco do Pablo Baião, o primeiro plano do filme...é algo muito bonito de se ver na tela grande. Além de rever a Lucélia, que é sempre uma coisa marcante. Depois o filme vai para o Canal Brasil.
Como você vê o momento do cinema nacional hoje? O governo decidiu realocar a Ancine...

Neste momento está mais difícil. Houve um momento de muita luz na era Lula e eu acho que foi uma honra bonita participar desde o momento da Retomada (meados dos anos 90), ser um atores ali. O cinema brasileiro estava quase moribundo, mas quem faz nunca deixou de fazer. As produções eram pouquíssimas e fui um dos construtores disso. Começou ali na 'Central do Brasil', 'O que é isso, companheiro?', 'O Auto da Compadecida'...e acho que 'O Auto...' foi muito visto no cinema e representou as pazes que fizemos com público brasileiro.
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Agora estamos nesse momento onde há uma dificuldade e muita incerteza com o que vai acontecer. Em 20 anos, fiz pelo menos dois longas por ano, a maioria de filmes experimentais e outras com muita bilheteria, como 'Cidade de Deus' e 'Serra Pelada'. A arte é o lugar da inquietude e temos que permanecer fazendo bastante cinema. Nesses anos todos, temos uma equipe imensa de grandes talentos que podem engrossar a lista do desemprego. Não sabemos muito bem o que vai acontecer, mas espero que o governo tome cuidado, porque o cinema é muito importante para um país se ver, haja visto a penetração violenta que os Estados Unidos conseguem fazer por aqui, de catequizar nosso imaginário.
A gente tem um cinema muito bonito, que pode preencher o imagiáario do povo e que pode nos fortificar. Há os grandes filmes, de bangue-bangue, como 'Tropa de elite', mas temos também o cinema de autor, da subjetividade, da brasilidade...então, as coisas estão um pouco recolhidas, está tudo sob expectativa. Da minha parte, quero continuar sendo um dos agentes para que possamos entender quem somos e, principalmente, para onde vamos.

Você também está na TV, em papeis antagônicos em 'Cine Holliúdy' e 'Filhos da pátria'. Como encara esses desafios?

Eu fico feliz da vida de fazer personagens assim. A segunda temporada do 'Filhos da pátria' será pesada, agora o Pacheco reencarna na era Vargas, mau como um pica-pau, então eu estou flertando com o fascismo (risos). Hoje (ontem) mesmo eu vou fazer uma das últimas cenas com o Geraldo, personagem do Alexandre Nero e promete ser bem forte. A escrita do Bruno Mazzeo ficou mais raivosa pelo que vem acontecendo pelo Brasil. 
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Sobre o 'Cine Holliúdy', eu já achava que ia ser um êxito. Se eu ficar na Globo e ficar alternando entre essas duas séries, vou me sentir muito útil e vou me divertir. O Olegário é uma clara homenagem dos autores ao Dias Gomes, porque ele é como uma releitura do Odorico Paraguaçu e do Dirceu Borboleta, de 'O Bem-Amado', só que numa roupagem com muita liberdade. Nós fizemos o Olegário falar errado de propósito, em alusão a presidentes recentes do Brasil, Lula e Bolsonaro, que falam um português podre por motivos diferentes (risos). E a gente vai brincando com essas coisas.
Há toda uma discussão sobre indústria x artesanato na série, o sonho de estar na TV e falando as coisas de um jeito brincante...as insistências dos políticos em querer se dar bem ou a do homem simples, o Francisgleydisson, de se dar bem...é uma reunião de atores desconhecidos e daqueles que o público conhece e gosta, que acho um acerto. Há muita coisa bonita e estou nesse momento gostoso.
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'A Serpente' tem pré-estreia no cinema Estação NET a partir do dia 24 de julho de 2019, quarta-feira

Horário: 21h

Endereço: Rua Voluntários da Pátria, 35 - Botafogo