O álbum Revivências já estava em construção, para ser lançado no segundo semestre de 2020, quando a pandemia do coronavírus virou o mundo de cabeça para baixo e levou bilhões de pessoas a entrarem em isolamento social. Lançando um olhar para a seleção das canções, o cantor, compositor e multiinstrumentista belohorizontino Sérgio Pererê percebeu o intenso diálogo que elas propunham com o momento presente: a tragédia cotidiana, a distopia, a morte, a solidão, a saudade, a transformação da sociedade, a esperança, a resistência e a fé; tudo se encontra em Revivências. Daí a decisão de antecipar o lançamento que, neste primeiro momento, será virtual. Assim, um dos mais reconhecidos músicos mineiros se reencontra, ainda que distante fisicamente, com seu público e oferece seu mais novo trabalho como um alento para os tempos de isolamento, ciente de que a arte simbolizando a vida é também cura.
Uma faceta de Sérgio Pererê não muito registrada em seus discos, mas sempre presente em seus shows, é ele como intérprete. A seleção de músicas aqui presente ajuda a dimensionar esse trabalho, dando, também, noção do longo escopo de influências e gêneros nos quais o cantor transita. De clássicos da MPB, se passa ao samba e se chega até ao rock brasileiro dos anos 1980, mas recolocando essas canções em diálogo com a própria obra produzida anteriormente por Pererê. Nesse sentido, Revivências é uma obra em que à interpretação se soma uma outra camada, uma outra linguagem, essa linguagem musical que o cantor desenvolveu nos seus anos de uma já longa carreira. Transitando entre compor e interpretar, Pererê tira as músicas do contexto original e consegue dar a nova vida, uma nova ideia e uma nova língua funcionando como uma espécie de tradução da obra para a própria linguagem do artista.
O título do disco remete a ao menos duas possibilidades de leitura. A primeira é a revivência do artista em contato com canções que marcaram sua formação musical, mas também sua estrada enquanto músico e aqui se insere desde o arrebatamento que teve quando em contato com Gilberto Gil, seus diálogos constantes com Milton Nascimento, e a amizade com Vander Lee, por exemplo. A segunda interpretação do título é a revivência das próprias músicas, que aqui ganham nova vida, nova possibilidade, novo alcance. Essas duas possibilidades de leitura, obviamente, se misturam.
Se utilizando de um conjunto bastante eclético de instrumentos e instrumentalização, o disco mistura percussão eletrônica, com violão, caxixis e timbila com flauta chinesa, tudo isso costurado pela voz presente e marcante. Assim, podemos perceber que o diálogo que o disco constrói é principalmente musical, em uma camada menos visível, mas inescapável. Nesse sentido, a participação dos músicos Acauã Rane e Richard também ajudam a construir o diálogo proposto pelo cantor.
É assim que se reconstrói uma Roda Viva, de Chico Buarque, no descompasso contemporâneo; é assim que Dança, de Chico César, passa a ganhar o sincopado das danças afro-brasileiras e indígenas; é assim que De Frente para o Crime, de Aldir Blanc e João Bosco, gira entre o trágico cotidiano e a festa; é assim que a homenagem ao amigo Vander Lee, com Estrela, se proclama com palavras em Umbundo e tom colorido da saudade; é assim que Canções e Momentos, dos parceiros Milton Nascimento e Fernando Brant, é reconstituída através da sonoridade vocalizada, mais do que instrumentalizada; é assim que Juízo Final, de Nelson Cavaquinho e Élcio Soares, pode se reconstituir diasporicamente no presente; é assim que o clássico de Gonzaguinha, Pequena memória para um tempo sem memória, faz estremecer um passado que insiste em ser esquecido; é assim que Só, de Luiz Melodia, deixa nascer o verso que diz “mesmo se tudo mudar por aí”; é assim que o Tempo Rei, de Gilberto Gil, encontra, enfim, o reinado mineiro.