Por daniela.lima
João Pimentel%3A três blocos%2C uma ruaDivulgação

Rio - Há 12 anos saí do Jardim Botânico para morar na Rua Cardoso Júnior, em Laranjeiras. Um amigo, Rodrigo, estava saindo de um apartamento e me convenceu de que ali eu seria feliz. Fui ressabiado. Não conhecia o lugar, achava meio deserto. Convenci um fotógrafo que trabalhava comigo a beber uma cerveja. Entramos em um velho armazém, pedimos uma gelada e ficamos observando o ambiente. Duas pessoas jogavam sinuca, sendo que uma delas desafiava o adversário dando tacadas nas bolas com um rodo. 

Depois fui saber que esta figura era Luiz Tarô, mecânico de máquina de lavar que nas horas vagas faz um trabalho genial de reprodução dos casarões da Cardoso em palitos de fósforo. O piso era de azulejos antigos desbotados e no alto havia uma imagem de Cosme e Damião, santos do meu dia de nascimento. E ali, onde mora a tranquilidade, resolvi ficar.

Com o tempo, fui descobrindo naquele pedaço de subúrbio que ali vivia também a dualidade. A começar pelo próprio nome da rua. No mural do armazém/bar, hoje o badalado Cardosão tem um velho pedaço de papel que explica que Cardoso Júnior, ou Cardosinho, foi um artista naïf admirado por Rubem Braga e Portinari, que começou a pintar aos 70 anos. Mas a placa da rua que fica em frente desdiz a informação. O tal Cardoso em questão seria um antigo chefe do estado-maior. Prefiro a primeira hipótese.

Ali convivem o lado bom e o não tão bom do subúrbio. Nos fins de semana, as crianças brincam soltas pela rua, jogam bola descalças. As senhoras saem de suas casas simples e levam suas cadeiras para as calçadas como em ‘Gente Humilde’, de Garoto, Chico Buarque e Vinicius de Moraes. Mas, se na hora do sufoco as pessoas se reúnem em mutirão, também é preciso cuidar da privacidade por conta da maldita fofoca. Mas nada que fira o charme do lugar. E, nesse ambiente, o samba também foi morar.

A Cardoso Júnior abriga dois blocos. Na realidade três, já que há dois anos alguns moradores antigos da transversal Aparício Borges, outro general, inventaram o Aparição. O Cardosão de Laranjeiras surgiu nos anos 70. Um grupo de moradores amantes do Carnaval, que frequentava blocos da região como Canarinhos e Periquitos, se uniu para fazer sua própria festa. Escolheram o azul e branco, passaram o livro de ouro entre moradores, comerciantes e conseguiram instrumentos de outros blocos.

“Comprávamos tecidos na Fábrica Bangu e fazíamos nossas próprias fantasias. Desfilávamos de tamanco, marcando o ritmo. Quando faltava grana, inventávamos rifas de frango com farofa e leilão de cabras. Eram outros tempos”, lembra Aloísio ‘Malandro’ Cortez.

O Cardosão desfilou em antigos redutos de Carnaval de rua, como Botafogo, Horto e Largo do Machado. Chegou a ser campeão na Sapucaí, em 1978. Três anos depois, por divergências internas, acabou. Em 1988, sentindo a mesma ausência de samba na rua, uma turma criou o Xupa Mas Não Baba, das cores laranja e verde. Os antigos até hoje reclamam do nome, mas os mais jovens explicam que é uma referência ao bairro. O símbolo é um pierrô chupando uma laranja.

Já em 2009, o Cardosão reapareceu, criando uma curiosa e saudável rivalidade. Os blocos têm algumas diferenças, como seus mestres de bateria, seus diretores, suas cores. No dia a dia todos defendem as suas bandeiras, exaltam seus sambas, mas, nos animados ensaios, aos sábados, independente do mandante da quadra, é possível ver os mesmos componentes suando a camisa, empunhando seus instrumentos com o mesmo amor. Ali, no campo de jogo do sambista, a rivalidade acaba, as pequenas desavenças cotidianas se esvaem, resta apenas a paixão pelo Carnaval.

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