Por daniela.lima

Rio - Os 78 quilos que diz pesar parecem menos. A pele branca, os óculos de grau e a silhueta que emoldura passos rápidos e desengonçados poderiam facilmente carimbá-lo como um estrangeiro perdido na Apoteose. São 23h35 de segunda-feira. A União da Ilha termina seu desfile ovacionada. Jorge Luiz Castanheira Alexandre, de 51 anos, sinaliza, esbaforido, para que um caminhão-guincho retire um dos carros com problema na dispersão. “Vem, vem, isso, para cá...”. Apressado, gesticula para o motorista e se lança sobre o gancho de ferro para engatar a parte a ser puxada. A operação é perfeita. O maior espetáculo da Terra não pode parar.

Perfeccionista não-assumido%2C Jorge Castanheira acompanha cada detalhe na Avenida%2C para que as escolas façam o melhor desfile a cada anoFernando Souza / Agência O Dia

O DIA acompanhou, durante 31 horas, em três dias, o trabalho do presidente da Liesa (Liga Independente das Escolas de Samba) nos desfiles dos grupos Especial e de Acesso. Há 24 anos — dos quais sete à frente da Liesa — , Castanheira segue a mesma rotina no Sambódromo. Enquanto o público fixa seus olhos nos desfiles, ele atravessa a Marquês da Sapucaí centenas de vezes para contornar as intempéries da folia mais pomposa do país.

Perfeccionista não assumido, o mineiro de Além Paraíba é um ‘faz tudo’. De tênis, calça branca larga e uma camisa azul onde se lê ‘Diretoria’, empurra caçamba, cata lixo, ajuda no atendimento a pessoas que passam mal, sinaliza o trânsito fora da Apoteose e tenta transformar a festa num espaço democrático. “Foi ele quem me deu”, aponta Maria de Lourdes da Silva, 93 anos, sobre a credencial de pista com que assistiu, pela primeira vez, os desfiles. Sem dinheiro para comprar ingresso, ela há 20 anos se contentava em participar dos ensaios técnicos.

Já passa de meia-noite quando Castanheira entra na cabine de áudio. Na passarela, a Vila Isabel divide opiniões. “Deixa só a percussão. Agora, quero ouvir um pouco do surdo”, diz ao técnico de mixagem Marcelo Saboia. “Ele tem um ouvido acima da média”, avalia Marcelo. Os números são tão impressionantes quanto a festa. A aparelhagem de mixagem e áudio chega em 25 carretas. Foi necessário um mês para ser montada, e o mesmo tempo será preciso para retirá-la.

Numa única hora da tarde, Castanheira chega a ligar 40 vezes para a mesma pessoa. “Ele é muito detalhista. Estávamos tratando do retorno das alegorias da Lierj e, por isso, queria saber de tudo. Estou acostumado”, conta Edson de Andrade, da Comissão de Dispersão. 

‘Apagando incêndios’ na madrugada

O relógio marca 4h22 de domingo. Em um escritório improvisado num conteiner atrás do setor 11, Castanheira lamenta: “O que vamos fazer agora? Meu Carnaval amanhã não pode ter furo.”

A reunião de emergência tem diretores de empresas contratadas para a montagem dos espaços da Liesa e dos sistemas de ar-condicionado, elétrica e hidráulica. No olho do furacão, banheiros que não funcionam nas tribunas e cabines de rádio, falta de acabamento nos fundos de um deles e detalhes pequenos, mas que saltam aos olhos do presidente da Liesa. “Tem uma parte do piso que não foi grampeada. Quando a porta do camarote abre, enrola na manta (emborrachada)”, reclama ele.

Em dez minutos de reunião, Castanheira pega o telefone e acorda um bombeiro hidráulico de sua confiança. “Desculpa, irmão. Sei que você está dormindo. Mas preciso da sua ajuda. Quando amanhecer, sai passando na casa do pessoal e traz para cá. Você acha que consegue montar uma equipe?” Diante da resposta positiva, ele desliga a ligação. 

MARATONA 

“É o amor que nos move”

É 0h20 de segunda-feira. Um grupo de pessoas que iria a um dos camarotes tem o acesso barrado próximo ao setor 2. Trajam camisa e estão sem convites. Há um princípio de tumulto e Castanheira é chamado. Sob o aval dele, o grupo é liberado. A noite já havia começado intensa. Às 23h14, ele já havia inspecionado os banheiros do setor 12, conversado com os seguranças que fazem o transporte das notas e conferido o som.

Acompanhar Castanheira exige boa forma. Num único dia, ele é capaz de passar nove horas em pé. No período de desfile, chega a ficar virado de um dia para o outro. “Isso é a magia do Carnaval. A gente espera o ano inteiro por isso. É o amor que nos move.” 

Imune a investigações por crime de contravenção

É inegável que um dos maiores trunfos de Jorginho Castanheira é ser o principal gestor do Carnaval carioca sem ter no currículo qualquer investigação por crime de contravenção, que historicamente esteve ligada ao mundo do samba. E, certamente, uma estratégia de preservação de imagem seguida à risca é separar o profissional da vida pessoal. Não por acaso, ele nunca desfilou e não é vistos nas quadras de ensaio. Não anda com segurança e dispensa regalias dos camarotes mais badalados do Sambódromo.

É isso que o faz transitar com tanta facilidade entre anônimos e personalidades. Ao caminhar cerca de 15 metros, o anfitrião da Sapucaí chamou pelo nome 43 pessoas, esbanjando uma memória invejável. De integrante de ala a seguranças, passando por empresários, artistas, faxineiros. Esta marca, obviamente, ultrapassa os 100 a cada hora na passarela.

“Nunca pensei nem quero ser político”, afirma ele, que não recebe salário da Liesa. “Tenho emprego em uma empresa no ramo de alimentação. Cheguei na Liga como office-boy, aos 21 anos. Considero um filho que ajudei a criar”, diz Castanheira, que é economista.

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