Após conquistar o título em 2016 pela Mangueira, carnavalesco Leandro Vieira aposta em desfile que contará lado 'B' da história do país. "A narrativa oficial desconstrói os feitos de negros e pobres", pontuou ele - Armando Paiva
Após conquistar o título em 2016 pela Mangueira, carnavalesco Leandro Vieira aposta em desfile que contará lado 'B' da história do país. "A narrativa oficial desconstrói os feitos de negros e pobres", pontuou eleArmando Paiva
Por *Luana Dandara

Rio - De 1683 a 1713, no Nordeste do Brasil, diversas tribos indígenas se reuniram em um movimento de resistência contra a invasão dos portugueses colonizadores. A chamada Confederação dos Cariris durou 30 anos, e será uma das histórias, praticamente desconhecidas do povo, recontadas neste Carnaval pela Mangueira. Em uma alegoria guiada por um camaleão rosa, esculturas de índios de diferentes etnias, incluindo os cariris, surgirão na Avenida com suas bocas tapadas por fitas vermelhas, alusão ao sangue derramado desses clãs. Segundo o carnavalesco Leandro Vieira, de 32 anos, o carro representará o genocídio indígena e a extinção da fauna e flora pelos europeus.

"Esses índios se articularam de tal modo que as tropas que combatiam o Quilombo dos Palmares, superfamoso no imaginário brasileiro, foram desviadas para conter a Revolta dos Cariris. Existe uma importância indígena além do que a gente aprende na escola, da peteca, da rede e da mandioca", afirmou Vieira. Outra alegoria, com cabeças gigantes de dragões dourados e estética africana, lembrará o jangadeiro Chico da Matilde. Apelidado de Dragão do Mar, ele contribuiu para o que o Ceará fosse o primeiro estado a abolir a escravidão, quatro anos antes da assinatura da Lei Áurea.

“São dados biográficos que ficam perdidos, e por não serem registrados e repassados, ganham quase um contorno mítico", pontuou o carnavalesco. O enredo ‘História pra ninar gente grande’ ainda evidenciará muitos outros heróis populares, em uma verdadeira aula de história. “Resolvi que era hora de dar luz a personagens iminentemente populares no sentido de gerar representatividade. A narrativa oficial desconstrói os feitos de negros e pobres, ao ponto deles desconhecerem a importância de uma mulher negra e pobre que se tornou vereadora”, ponderou Vieira, ao citar Marielle Franco, também homenageada no desfile.

Segundo o carnavalesco da Verde e Rosa, Leandro Vieira, o enredo nasceu da ideia de dar protagonismo a heróis populares. "O que o povo brasileiro não tem e não encontra é representatividade", afirmou - Armando Paiva/Agência O Dia

Na Sapucaí, a "primeira verdade histórica que será desmitificada", de acordo com o profissional, é o descobrimento do Brasil. "Descobrir o que se já existia aqui uma sociedade organizada com tradições seculares? Contar a história do país a partir de 1500 é desprezar toda uma trajetória anterior. Por isso que ainda hoje lidamos tão mal com as questões indígenas e reforçamos mitos, como o (vice-presidente) Mourão que diz que o brasileiro herdou a indolência dos índios, como se esses fossem preguiçosos. Por isso também que um deputado (Rodrigo Amorim, do PSL) fala que quem gosta de índio tem que ir pra Bolívia, ele desconhece que aqui todo mundo é índio". Brilharão nas alas os líderes indígenas Sepé Tiaraju e Cunhambebe.

Em seguida, será a vez dos negros ganharem destaque pela Mangueira. "Os personagens serão apresentados distantes da ideia pejorativa do escravo acorrentado. Serão reis e rainhas negros", disse o carnavalesco. Enquanto Nelson Sargento e Alcione virão como Zumbi de Palmares e Dandara, o casal de mestre-sala e porta-bandeira será Manuel Congo e Mariana Crioula, quilombolas da Região Fluminense. "O próprio movimento negro foi machista quando escolheu seus líderes, então se sabe muito da história de Zumbi e pouco de Dandara. Ela traz protagonismo à mulher negra, liderou tropas nos Palmares e quando capturada, preferiu se suicidar a voltar a condição de escrava", acrescentou.

No penúltimo setor, personagens apresentados como heróis serão desconstruídos de forma irônica. Entre eles: Pedro Álvares Cabral, o padre José de Anchieta e Princesa Isabel. "Isabel aboliu a escravidão por pressões externas, e para atender interesses econômicos da elite brasileira. Não pode ser colocada como heroína", defendeu o carnavalesco da Verde e Rosa. Proclamador da Independência, Dom Pedro I virá montado em cima de uma mula, em vez de um cavalo às margens do Ipiranga.

Por fim, a agremiação da Zona Norte evidenciará nomes populares, como Cartola, que sequer completou o Ensino Médio e é um dos maiores autores da MPB. Uma ala, com a cantora Rosemary e a viúva de Marielle Franco, Mônica Benício, homenageará moradores de favelas de todo o país. "O que me coloca na Avenida é um movimento de militância, de luta. É urgente discutir representatividade e reconhecer heróis populares", expressou Benício, que participou do ensaio técnico na Sapucaí no domingo. 

Viúva de Marielle Franco, Mônica Benício desfilará na última ala da Mangueira com a cantora Rosimary. No domingo, as duas se reuniram no ensaio técnico na Sapucaí - Reprodução/Redes Sociais

Já na última alegoria, que é um grande livro aberto, Hildegard Angel estará presente para lembrar as mortes provocadas pela Ditadura Militar de 1964, como de sua mãe Zuzu Angel e seu irmão Stuart. "O desfecho é um olhar para o povo como sinônimo de patriotismo", explicou Leandro Vieira.

Questionado como o desfile será recebido pelo público, o detentor do título de 2016 do Grupo Especial defendeu que a Mangueira está junto a sua comunidade. "A Mangueira só pode, pela sua história, se colocar ao lado dos índios, negros e pobres. Levar a sociedade ao pensamento crítico, defender a causa indígena, a luta negra e quilombola, e olhar para as comunidades carentes do Brasil como sinônimo de patriotismo deveria ser algo que não tem partido, eu acho que tudo isso é apolítico", concluiu.

Economia: fantasias terão penas falsas

Na busca de economizar em meio aos cortes financeiros do Carnaval, Leandro Vieira apostou na tecnologia e criou penas falsas para fantasias, digitalizadas a partir de plumas verdadeiras de araras. "São dois setores dedicados a estética indígena, que é exuberante por si só. Por isso, busquei essa solução criativa em que o visual fica o mesmo, só que de tecido", afirmou. "Depois que enfrentei a situação adversa na Caprichoso de Pilares, nenhuma crise financeira pode me colocar medo. Desde que cheguei na Mangueira nunca foi bom de grana, não está melhor nem pior".

A Mangueira este ano, argumentou o carnavalesco, seguirá com estética moderna. "Meu maior desafio é trabalhar temáticas contemporâneas dentro de uma escola ultraconservadora. A Mangueira que eu faço é onde o verde e rosa não é a predominância, onde as muitas cores do Brasil são apresentadas, onde os seios nus voltam a aparecer, coisa que a escola nunca gostou. É uma Mangueira que tem 90 anos, mas acho que está mais soltinha", brincou.

Leci Brandão e Evelyn Bastos serão escravas revolucionárias

Citada no samba-enredo, a cantora Leci Brandão, 74 anos, representará no desfile da Verde e Rosa a ex-escrava Luísa Mahin, envolvida nas revoltas de escravos da Bahia. "Sou fã da Leci. Boa parte desse caráter político que meu trabalho assume, em determinados momentos, é fruto do que ouvi do repertório dela. E essa figura combativa encontrou uma associação íntima com Luísa Mahin, uma das líderes do levante dos negros malês. Se a revolta tivesse sido bem-sucedida, Luísa seria declarada a rainha da Bahia, então Leci virá em um trono", alegou Vieira.

A cantora, que foi até a Cidade do Samba conferir de perto o trabalho no barracão, contou que chorou ao ouvir pela primeira vez o hino da Mangueira deste Carnaval. "É muita emoção para uma Leci só. Nós estamos em um momento de muito retrocesso, e a Mangueira tem a responsabilidade de abrir a cabeça do público, retomar o Carnaval como protesto. Estou duplamente feliz, por mais uma vez estar na minha escola, e por representar uma figura tão importante", disse ela, que foi a primeira mulher a entrar na ala de compositores da agremiação.

Leci Brandão, citada no samba-enredo da Verde e Rosa, desfilará como Luísa Mahin em trono baiano - Armando Paiva/ Agência O Dia

Rainha de bateria, Evelyn Bastos, 25 anos, viverá Esperança Garcia na Avenida. Escrava, Garcia foi reconhecida como a primeira advogada do Piauí, e denunciou por escrito as violências que sofria. "Estou bem emotiva com a minha escola saudando os verdadeiros desbravadores da história do Brasil. Minha preparação está sendo psicológica, porque estou ansiosa e com muita vontade de viver esse momento", contou ela, que é professora de educação física e cursa graduação em história. 

Evelyn Bastos, rainha de bateria da Mangueira, usou fantasia de escrava Anastácia em ensaio técnico no Sambódromo. "Estou bem emotiva", contou - Divulgação

Classificada em quinto lugar no ano passado e em busca do 20º campeonato, a Estação Primeira de Mangueira será a penúltima a desfilar na segunda-feira de Carnaval.

*Estagiária sob supervisão de Angélica Fernandes

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