Rio - ‘Querem apontar o lugar dos pretos, querem que a gente seja sempre subserviente. O lugar dos pretos é onde eles quiserem! Se não for o que a gente quiser ser, eu quero é que se f...!”. Imerso na cultura da África lusófona, onde desembarcou para escrever as canções do segundo CD de estúdio, ‘Sobre Crianças, Quadris, Pesadelos e Lições de Casa’, Emicida volta disposto a meter o dedo na ferida eternamente aberta do racismo à brasileira, em músicas como ‘Boa Esperança’, ‘Mandume’ e até na supreendentemente pop ‘Passarinhos’, gravada ao lado de Vanessa da Mata.

A primeira andou fazendo o rapper paulistano ouvir críticas sobre “apologia à violência”, por causa de um clipe dirigido por Kátia Lund e João Wainer e de versos como “aguarde cenas do próximo capítulo/cês diz que nosso p... é grande/espera até ver nosso ódio”. No vídeo, empregados domésticos (negros) são humilhados pelos patrões (brancos) e iniciam uma rebelião no local de trabalho.
“Pô, a polícia mata mais de seiscentas mil pessoas por ano e vêm reclamar de uma gotinha de sangue? Isso é problema de quem vive numa bolha”, diz o rapper. Vieram à tona acusações de machismo e “complexo de Cirilo” (referência ao personagem interpretado por Jean Paulo Campos em ‘Carrossel’) pelo fato de um dos personagens, negro, envolver-se com a filha de um dos patrões. “Teve isso? Bom, quem tem boca fala o que quer, né?”
Em meio aos 40 anos de independência da África lusófona e preparando o novo disco (que quase se chamou ‘Ubuntu’, expressão africana que tem “generosidade” como um de seus significados), Emicida decidiu viajar para Angola e Cabo Verde para realizar quase um “diário de bordo”. Passou 20 dias entre os dois países e Madagascar, onde tirou férias. “O disco vai virar até um documentário. Passei a viagem rabiscando, escrevendo. Muita gente fala da África de fora dela e quis falar de dentro”, conta Emicida, tocado especialmente por textos como ‘Auto da Lusitânia’, do português Gil Vicente (século 16), e ‘As Aventuras de Ngunga’, do angolano Pepetela, sobre um pequeno guerrilheiro.

“O estereótipo que a gente tem da África é ruim. Tem um estereótipo de Cuba, mas o da África é pior. O de Cuba é um rótulo comunista-dançante”, brinca. “O brasileiro consome o continente pelo olhar do colonizador europeu, que sequestrou as pessoas e se apropriou das terras. A África não precisa ser salva pelo Tarzan ou pelo Indiana Jones.”
As anotações no “caderno de viagem” do rapper levaram ao clima de celebração de ‘Mufete’, cujo título é o nome de um prato típico local. “É um peixe, que se chama carapau, com óleo de palma e banana da terra. Pena que quando ouço a música me dá vontade de comer e não acho esse prato em São Paulo”, brinca. E ao contato com as crianças de uma escola de música cabo-verdiana, presentes no coral de ‘Casa’. “Tinha muita pobreza e muita desigualdade lá, mas o olhar das crianças mantinha a pureza.”
Em ‘Passarinhos’, reggaezinho composto no ukelele e cuja sonoridade insere-se entre o folk e o pop, o clima é leve, mas nem tanto. “As pessoas prestam atenção na melodia, mas a letra dessa música fala sobre o banzo (saudade) que os africanos sentiam quando foram escravizados. Não é um discurso fácil.”