Rio - Quando Darina Hediard* tinha 13 anos, foi diagnosticada com depressão. Tomou remédios até quase 17 anos e teve acompanhamento psicológico no período. Aos 19, logo depois de entrar na faculdade, os médicos descobriram que o que ela tinha não era uma depressão, mas o transtorno afetivo bipolar, ou bipolaridade. Quem trouxe novamente à tona o tema é a novela “A Regra do Jogo”, em que Nelita, personagem interpretada por Bárbara Paz, é considerada bipolar. No entanto, as cenas da novela não são fiéis àquelas que acontecem na vida real de um bipolar, analisam especialistas.
Crítica à novela
A Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) se posiciona sobre a novela e diz: “É importante salientar que a personagem da novela não tem nenhuma relação com a realidade de nenhuma patologia psiquiátrica. O quadro apresentado não tem nenhuma relação com o Transtorno de Humor Bipolar”.
A Associação Brasileira de Familiares, Amigos e Portadores de Transtornos Afetivos (Abrata) se posicionou contra os estereótipos da novela, em nota. “A novela veicula uma informação incorreta sobre o que é transtorno bipolar e, como foi ressaltado nos capítulos iniciais, confunde transtorno de múltiplas personalidades (ou transtorno dissociativo de identidade) com transtorno bipolar com sintomas psicóticos e mostra o personagem em questão com comportamentos que não se identificam com os sintomas dos Transtornos de Humor”.
Realidade diferente e equilibrada
Darina, hoje com 25 anos, conta o que acha sobre a novela. “A personagem mostra exatamente como são todos os estereótipos que existem sobre o transtorno bipolar, e não gostei nada disso. [A novela] Passa uma ideia de que o bipolar não tem limites hora alguma, que nunca sabe o que quer, que é louco e que tem mais de uma personalidade, como se tudo fosse ou oito ou oitenta, sempre com drogas, dívidas e violência. Isso está fora da realidade”, critica.
Na realidade, o transtorno bipolar não é tão simples de ser diagnosticado. A estudante de design gráfico também critica a banalização do preconceito. “Muitos dizem ter o transtorno simplesmente por mudar de humor repentinamente, dizendo coisas como ‘ah, isso é culpa do meu lado bipolar’ ou ‘nossa, como estou bipolar hoje!’. Isso acaba passando uma imagem de que ser bipolar é legal, levando as pessoas a verem isso tudo como brincadeira, o que diminui a gravidade da doença diante dos outros”.
Darina conta que no início procurou um psiquiatra por causa de ataques de pânico. “Mas ao longo das conversas foi saindo o diagnóstico. Hoje, seis anos depois do diagnóstico, percebo que tive minha primeira crise de mania quando entrei na faculdade. Aquilo era totalmente diferente para mim e me aparentava ser sensacional”, conta ela.
Bebidas e ataque de pânico
“Com isso, comecei a beber, sair e acabei terminando um relacionamento de quase quatro anos. Depois de um tempo vivendo essa vida boêmia, fiquei mal, bem mal mesmo. Comecei a me cortar, ter ataques de pânico e procurei a psiquiatra”.
Ela conta que, quando esteve na fase depressiva, viu o mundo em tons de cinza. “Nada tinha graça, nada me interessava. Não via motivo para sair, estudar, comer ou até tomar banho. Era um sofrimento enorme, uma dor no peito que não me deixava querer ou fazer nada”, conta ela. “Me cortar gerava uma grande descarga de adrenalina que aliviava a dor, ver o sangue escorrendo me acalmava”.
A psicóloga da Clínica Maia Simone Clara Paiva Martins da Silva explica que o transtorno bipolar normalmente acontece em episódios que podem durar longos períodos.
“Quando em crise, o paciente pode ter um episódio de mania (euforia), e aí fica com uma sensação de poder, de que pode fazer muitas coisas ao mesmo tempo. Ele perde a crítica social e às vezes pode agir de forma um pouco grosseira ou inadequada, durante uma festa ou no trabalho”, conta ela.
“Alguma coisa vai destoar do padrão. Esse período pode ser longo, mas a família deve ficar atenta porque a pessoa não fica estável, e vai da mania para a depressão”. A transição dos estados de humor, no entanto, não é rápida como mostra a novela.
A internação de um paciente bipolar, conta Clara, só é necessária se ele estiver com sintomas psicóticos. Caso contrário, poderá ser tratado com medicação e terapia e viver a vida fora de uma clínica.
Mania ou hipomania
Darina conta que consegue perceber quando está entrando na fase eufórica da bipolaridade, chamada de mania ou hipomania. A mania é um estado eufórico mais forte, enquanto a hipomania consegue ser manejada com mais facilidade.
“Percebo que estou entrando em mania quando começo a ficar mais agitada, mais impulsiva, mais falante, sem conseguir acompanhar minha linha de raciocínio. Por estar sempre com a cabeça muito agitada, acabo dormindo muito pouco e muito mal. Quanto à impulsividade, às vezes, começo a comprar coisas que não tenho tanta necessidade, mas isso não é frequente e nunca cheguei a fazer dívidas exorbitantes por isso”, conta ela.
A estudante de design gráfico conta que hoje se sente muito bem. “Não sei falar exatamente quando comecei a me sentir melhor, mas as coisas começaram a se encaminhar na medida em que me sentia mais disposta, e com isso tinha mais forças para me segurar e não desencadear uma crise quando estava mal”, diz.
Namorado bipolar
“Apesar de todos os problemas que passei, acabei me encontrando e, junto, encontrei meu namorado. Ele também é bipolar e em dezembro vai fazer três anos que estamos juntos”.
Darina conta que o que mais a incomoda em uma crise é quando dizem que depressão é “falta de força de vontade” e que a pessoa deve “tentar fazer alguma coisa”. O preconceito contra bipolares também é forte, conta ela.
“Já ouvi muito as famosas frases: ‘ih, já tomou seu remedinho hoje?’, ‘só podia ser bipolar mesmo...’”, diz. “O maior preconceito é o fato de não poder contar para qualquer um que sou bipolar por causa desse estereótipo totalmente incorreto que passam para as pessoas, como a personagem da novela”, diz.
Origem da bipolaridade ainda não está esclarecida
Clara conta que uma das possíveis razões para a bipolaridade surgir é a herança genética. “Quando levantamos a história do paciente, vemos que ele teve familiares com o transtorno, como tios ou avós”.
A psicóloga explica também que há a suspeita que os fatores ambientais também possam influenciar no aparecimento do transtorno. “Quem vive em um ambiente muito agitado, com uma família não estruturada, pode ter os sintomas desencadeados”, diz.
Sintomas tais que não surgem na infância. “Normalmente acontece no adulto jovem. O normal é aparecer no início da fase adulta, entre 20 e 30 anos. Pode acontecer na adolescência, mas normalmente após os 18 anos”.
Reportagem: Elioenai Paes
* O nome foi trocado a pedido da entrevistada