Rafael, que antes não comia arroz e feijão, já começa a mudar os hábitos
Rafael, que antes não comia arroz e feijão, já começa a mudar os hábitosArquivo pessoal
Por Priscila Correia

Rio - Na casa de Danielle Blaskievicz, os filhos Augusto e Rafael, de 6 e 9 anos, são completamente diferentes na hora de se alimentar. Enquanto o mais novo come de tudo, o maior é super-resistente às novidades, só aceitando com facilidade as chamadas guloseimas, como pizza, hambúrguer, doces e afins. Para a mãe, claro, é complicado entender como os dois podem ter relações tão diferentes com a comida, já que ambos são criados da mesma forma. “Sempre foi um desafio com o Rafael, desde bebê. Aí, na preocupação de deixá-lo sem comer, eu acabava oferecendo os alimentos que ele aceitava. E assim, ele foi crescendo, cheio de restrições para alimentos novos. Pra mim, como mãe, isso traz uma sensação de culpa, de confusão e de impotência por não saber como agir para melhorar esse lado dele”, conta.

Mãe de Francisco, de 5 anos, Melissa Rossi lembra que embora o filho sempre tenha apresentado certa seletividade para comer – inclusive na época do aleitamento materno, deixando o seio de lado e preferindo a mamadeira -, foi aos dois anos e meio que tudo realmente piorou. “Como ele se negava a ingerir qualquer alimento fora da lista dele, fomos a uma nutricionista infantil, que identificou os problemas na alimentação e estabeleceu uma conduta comportamental totalmente voltada ao arranjo da família, com suporte psicológico para todos em casa. Com ela, descobrimos que o Chico tem enorme rejeição a experimentar texturas, sabores, consistências, cheiros e aspectos diferentes do que está acostumado a comer. O tratamento tem funcionado e, especificamente de um ano para cá, como ele adquiriu mais linguagem, a gente também tem conseguido fazê-lo entender que não pode substituir comida por biscoitos o dia inteiro”, esclarece Melissa.

E não basta seguir o tratamento adequado com profissionais especializados. Para Kamila Neto Garcia, mãe de Helena, de 8 anos, é preciso muita calma para lidar com o problema, que muitas vezes é ocasionado por terceiros. “A seletividade da minha filha começou com a creche, que não seguiu a introdução alimentar como estávamos fazendo e ia bem em casa. Descobrimos que estavam obrigando ela a comer algo que não gostava, como fígado, e foi a partir desse episódio que começou. Como não conseguimos melhorar a seletividade dela em casa, passamos a fazer o acompanhamento com pediatra e psicólogo. A pandemia atrapalhou um pouco o tratamento esse ano, mas ela já está mais aberta a provar novas coisas e consciente de que precisa melhorar. Durante muito tempo eu me culpei por tudo isso e às vezes perdia a paciência. Mas é preciso entender o processo e procurar a solução. O acompanhamento psicológico requer empenho de toda a família”, define.

Crianças que selecionam o que querem ou não comem não são exatamente uma novidade. Afinal, até adultos, se tiverem que escolher, vão optar por algo que agrade o paladar. O problema começa a acontecer quando essa seletividade se torna um ponto não negociável com a criança, quando ela simplesmente se nega a comer o que não quer. A psicóloga Larissa Braga, especialista em Terapia Cognitivo Comportamental e co-autora do livro “O Desafio de Educar 2”, explica que, geralmente, a seletividade alimentar acontece não apenas quando a criança recusa determinados tipos de comida, mas também quando tem pouco apetite ou só quer comer determinado tipo de alimento. “Muitas vezes, o gatilho para aquela criança não querer comer algo está ligado não apenas ao paladar, mas a algum trauma, como se por alguma associação. Por exemplo, a criança comeu determinado alimento e teve dor de barriga; ou alguém brigou com ela para comer alguma coisa; engasgou com algum alimento, teve dificuldade na mastigação”, exemplifica. Ou seja, é preciso avaliar a origem do problema para tratá-lo.
E complementa: “O tratamento multidisciplinar é muito importante. O psicólogo deve avaliar as possíveis causas e ajudar a criança a enfrentá-las; o pediatra irá avaliar se há algum prejuízo fisiológico; e caberá ao nutricionista apresentar novos alimentos e novas formas de incluí-los no cardápio da família. No caso da psicoterapia, ela ajudará a desconstruir o bloqueio da criança em experimentar novos sabores, texturas e os possíveis medos desenvolvidos nesse processo. Muitas vezes, a família busca tratamento quando a questão se torna muito complexa, quando já houve um desgaste emocional grande. E vale lembrar que o processo psicoterapêutico também tem a função de orientar os pais em relação a essa questão”.

A nutricionista Juliana Nabarrete, especialista em nutrição clínica em pediatria da Sociedade Brasileira de Oncologia Pediátrica (SOBOPE), lembra, ainda, que outros fatores podem desencadear a seletividade alimentar, como o desmame precoce e a introdução das fórmulas infantis; a forma como será feita a introdução alimentar complementar a partir dos 7 meses de vida, quando a criança começa a ter contato com novos alimentos; o ato de recompensar ou “chantagear” os filhos para que comam algo, o que acaba gerando uma relação distorcida da criança com a comida; algumas doenças que podem dificultar o processo de introdução alimentar ou criar inúmeras aversões alimentares, deixando a criança consumindo pouca variedade de alimentos; e algumas situações familiares, como nascimento de irmãos, morte, separações, mudanças de residência, traumas ou qualquer outra mudança de rotina pode levar a distorção da relação com comida. “A seletividade é uma doença multifatorial. O estado clínico da criança, bem como seu estado emocional e o ambiente em que ela está inserida pode colaborar para problemas alimentares”, avalia.

Mas é importante lembrar que, assim como qualquer outra criança, mesmo que a raiz do problema seja tratada, isso não significa que a criança passará a comer de tudo, mas, sim, aumentar a variedade de alimentos. “Entendendo qual a origem da seletividade alimentar, o profissional traçará a melhor estratégia para expor a criança a novos alimentos e texturas, e, gradativamente, vai aumentando a variedade de alimentos. Alguns estudos estipulam de 20 a 25 exposições de alimentos novos para este ser aceito como alimento parte da rotina alimentar. Mas é claro que existe não gostar de alimentos. O paladar de cada criança é único. Ela pode amar banana e não gostar de maçã, pelo sabor ou pela textura. É importante respeitar isso, pois seletividade é diferente de individualidade”, pondera Juliana.



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Os pais devem obrigar os filhos a comer?
Jacqueline Padovesi, pediatra da Unidade de Internação do Hospital Infantil Sabará, explica que os adultos sempre serão os responsáveis pelo cardápio, seu preparo e oferecimento, pois uma criança não tem maturidade e conhecimento para isso, e sempre escolheria os mesmos alimentos de que gosta. Porém, quem deve escolher o que será comido, o quanto será comido e dar o ritmo à alimentação é sempre a criança.
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“Não devemos jamais obrigar, chantagear, premiar ou punir para fazer a criança comer. Afinal, que tipo de relação queremos que nossos filhos tenham com a comida no futuro?”, pontua. Valéria Goulart, nutróloga pela Associação Brasileira de Nutrologia e endocrinologista pediátrica pela Unifesp faz também um alerta: “Brigar nunca é o correto. Pois a hora da refeição, que deveria ser um prazer, passará a ser um castigo. O ideal sempre é ser o exemplo para seu filho. Faça da refeição um momento em família, algo que seja prazeroso para os pais e para as crianças. Comer junto, mostrar que o adulto come saudável é o primeiro passo, pois somos o espelho para nossos filhos”, pondera.

A pediatra Beatriz Lam, do Hospital Real D’or e consultora de introdução alimentar, observa também que a seletividade alimentar pode desencadear problemas sérios na saúde das crianças. Nutrientes essenciais, aqueles que o organismo não consegue sintetizar sozinho, precisam vir da dieta, ou seja, é preciso que as pessoas consumam esses nutrientes. “A maioria das vitaminas e minerais são nutrientes essenciais, que precisamos comer, para obter. Se a dieta é muito restrita, a absorção desses com certeza ficará prejudicada. Além disso, muitas vezes o organismo não faz a devida absorção de nutrientes presentes na comida. Essa falha ocorre em razão das diversas interações que acontecem durante o processo digestivo. Ou seja, para aproveitar todos os benefícios dos alimentos é necessário combiná-los, por isso a necessidade de variedade no prato”, explica. E mais: a seletividade pode gerar impactos no desenvolvimento neurológico (com atraso psicomotor e cognitivo), metabólico (aumentando a chance de desenvolver doenças como diabetes, hipertensão e obesidade), imunológico (com infecções de repetição) e diretamente no ganho pondero estrutural, levando muitas vezes à baixo peso e baixa estatura.
“Embora pouco se fale sobre isso, é preciso lembrar que nutrição infantil começa na gestação, pois além de contribuir com os nutrientes adequados para a formação de todo o organismo, a dieta materna também interfere no paladar desta criança, assim quanto maior o número de alimentos (saudáveis) ingeridos por essa mãe, maior a chance da criança gostar destes alimentos. Alimentação é um comportamento familiar, todos devem estar empenhados no processo. É muito mais fácil ensinar uma criança a gostar de todos os grupos alimentares desde o início da introdução alimentar do que corrigir erros já instalados. Por isso a importância de uma correta introdução alimentar a partir dos 6 meses de vida”, conclui Beatriz.


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Seletividade e TEA
A seletividade alimentar é um fator que tem sido cada vez mais observado em crianças com Transtorno do Espectro Autista (TEA). Hábitos como só comer determinados tipos de alimentos, como batata frita, alimentos crocantes ou até de uma determinada cor; não gostar de tomar água e até ter relutância em experimentar novos alimentos pode ser um indicativo de TEA. Mariana Hipolito, fonoaudióloga, pedagoga e autora do livro 'Estimulação da linguagem no transtorno do espectro autista', explica que a seletividade em crianças autistas não têm uma idade específica para começar, podendo iniciar já no período da introdução alimentar.
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“O acompanhamento com profissionais especializados é fundamental para que tenham uma alimentação mais equilibrada. Além de médico, nutricionistas e psicólogos, fonoaudiólogo e terapeuta ocupacional, ambos especialistas em alimentação e integração sensorial, também precisam participar do tratamento da criança”, avalia.