TV italiana faz reportagem sobre vírus criado em laboratório na China. Qual a relação com o coronavírus? - Reprodução de TV
TV italiana faz reportagem sobre vírus criado em laboratório na China. Qual a relação com o coronavírus?Reprodução de TV
Por AFP
Rio - Publicações compartilhadas milhares de vezes em redes sociais afirmam que uma reportagem, veiculada em 2015 pela emissora de TV italiana RAI, demonstra que o novo coronavírus foi criado em um laboratório pelo governo chinês. A matéria, que fala sobre cientistas que criaram uma versão híbrida de um coronavírus de morcego na China cinco anos atrás, foi baseada em um estudo da revista científica Nature. Em março de 2020, o periódico esclareceu que não há evidências de que esse experimento tenha relação com a pandemia atual.
“Está aí a prova cabal do crime. Vírus de laboratório by China. Criação do Vírus Chinês foi mostrado na TV RAI da Itália em 2015, que alertou sôbre [sic] o perigo que a China estava criando”, diz uma publicação, compartilhada mais de 400 vezes no Facebook desde o último dia 25 de março.

A legenda acompanha uma reportagem, transmitida em 16 de novembro de 2015 na emissora de TV italiana RAI, na qual um apresentador afirma: “Cientistas chineses criaram um supervírus pulmonar a partir de morcegos e ratos. Serve apenas para fins de estudo, mas há muitos protestos. Vale a pena arriscar?”.

A alegação semelhante aparece em múltiplas postagens no Facebook, Twitter e YouTube, somando mais de 4 mil compartilhamentos e 54 mil visualizações.

A reportagem da RAI também foi publicada, em 25 de março, pelo ex-vice-premiê da Itália Mateo Salvini, com a informação de que seu partido, a Liga Norte, encaminharia uma “pergunta urgente” ao primeiro-ministro e ao ministro das Relações Exteriores do país sobre o assunto.

A matéria de 2015 não tem, contudo, relação com a pandemia atual de coronavírus.

O que diz a reportagem
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A matéria, transmitida em 16 de novembro de 2015 no quadro sobre ciências de um telejornal da emissora de TV italiana RAI, o TGR Leonardo, detalha a maneira como pesquisadores chineses conseguiram criar um organismo modificado “alterando a proteína superficial de um coronavírus encontrado em morcegos” para que este gere uma síndrome respiratória aguda grave (SARS).

Segundo a reportagem, o vírus criado em laboratório poderia contagiar humanos, levando a um debate sobre se os aprendizados promovidos por experimentos deste tipo justificariam os possíveis riscos.

Uma busca no Google pelos termos mencionados na reportagem e o nome do programa levou a um artigo da agência de notícias italiana ANSA de 25 de março de 2020, no qual o diretor do quadro TGR Leonardo, Alessandro Casarin, explica que a reportagem foi baseada em uma publicação da revista científica Nature e que “há apenas três dias, a mesma revista deixou claro que o vírus sobre o qual o serviço relata, criado em laboratório, não tem relação com o vírus natural [que causa a] COVID-19”.

De fato, uma análise dos materiais publicados pela Nature em novembro de 2015 localiza um artigo intitulado, em tradução livre: “Vírus de morcego projetado gera debate sobre pesquisas arriscadas”.

Em março de 2020, uma nota foi acrescentada no topo do texto, afirmando: “Sabemos que essa história está sendo usada como base para teorias não verificadas de que o novo coronavírus que causou a COVID-19 foi projetado. Não há evidências de que isso seja verdade; os cientistas acreditam que um animal é a fonte mais provável do coronavírus”.
Após a reportagem de 2015 começar a ser associada ao novo coronavírus, o programa Porta a Porta, da mesma emissora de TV italiana, convidou um especialista para debater o tema. Na transmissão, o professor Fabrizio Pregliasco, especialista em Virologia da Universidade de Milão, classificou a possibilidade do novo coronavírus ter “escapado” de um laboratório como uma “teoria da conspiração”.

“Há, pelo contrário, confirmações de que se trata de uma origem natural, através sempre de uma variação de um vírus do morcego. O genoma que foi isolado mostra uma origem natural. Teórica, essa possibilidade entra nas possibilidades de complôs, de teorias da conspiração que são também ligadas ao fato que em Wuhan há um belíssimo laboratório de alta segurança onde acontecem estudos. Mas reforço que, na realidade, essa não seria a origem desse vírus”, afirmou Pregliasco, em tradução livre do italiano.