Por monica.lima

Nada como o futebol para revelar a alma de um povo, suas conquistas e mazelas. Ou deixar mais óbvios os preconceitos de muita gente. A militante oficial da direita norte-americana, Ann Coulter, uma loira de cabelos compridos e olhos claros, comprou briga com os amantes do esporte bretão por essas bandas com duas colunas provocativas. Provocativas não, preconceituosas mesmo, e abarrotadas de ignorância, total desconhecimento a respeito do tema sobre o qual se aventurou a escrever. Faltou, acima de tudo, um pouco de respeito pelo esporte com o qual o mundo vibra, apaixonado.

Mas Dona Ann sabe direitinho o que está fazendo. Ela sabe, por exemplo, que os Estados Unidos alcançaram um nível de jogo que já não pode mais ser desprezado. E mais importante ainda: o futebol já tem um público e já movimenta um volume de dinheiro por aqui que já se justifica até uma colunista de política se meter no assunto. Claro, Ann Coulter também quer capitalizar o momento. E usou o futebol para deitar seu veneno contra os imigrantes latinos, responsáveis pela popularização do esporte na terra de Tio Sam.

Dona Ann sabe que tem público para essa verborragia preconceituosa. Basta lembrar o que aconteceu na última semana na Califórnia. Incentivados pelo prefeito da pequena Murrieta, no sul do estado, cerca de 300 moradores foram para a estrada barrar a passagem de três ônibus que levavam 140 imigrantes ilegais para o centro de triagem da polícia da fronteira. Os centros do Texas estão abarrotados de gente. Um número cada vez maior de imigrantes da América Central, muitos deles crianças desacompanhadas, têm cruzado a fronteira com o México em busca de segurança e chance de trabalho nos Estados Unidos. O Departamento de Segurança Interna, responsável pela administração dos imigrantes ilegais, decidiu levar parte dos detidos no Texas para a Califórnia, em busca de espaço e triagem mais eficiente.

O prefeito de Murrieta, cidade com 103 mil habitantes, fundada por espanhóis em 1873, insuflou o comportamento hostil dos moradores fazendo discursos xenófobos, questionando porque o governo federal queria “depositar” aqueles ilegais em Murrieta. Como se fossem lixo atômico. Mas é sempre assim nos momentos de crise, quando a economia não vai lá muito bem das pernas, o desemprego aumenta, etc. Busca-se logo um bode expiatório, não é verdade? E quase sempre “sobra” para o outro, o diferente, o estrangeiro. Ironia é lembrar que a tomada da Califórnia, por parte dos norte-americanos, na batalha com os mexicanos, aconteceu apenas 26 anos antes da fundação de Murrieta.

Ann Coulter veio de encontro a esse público, ela representa essa voz que vê no crescimento da população latina do país uma ameaça aos valores e status dos brancos. E foi assim que ela deixou claro ao que vinha: disse que essa aparente febre da Copa, que tomou conta de várias cidades do país (no dia do último jogo dos Estados Unidos, alguns estádios de futebol e ginásios ficaram abarrotados de torcedores acompanhando a partida em telões, sem falar nos milhares de bares e restaurantes que agora mostram todos os jogos, e de parques e praças que também aderiram à festa), é sintoma da decadência dos Estados Unidos. Tudo culpa do falecido senador Teddy Kennedy, coautor da maldita lei de imigração de 1965. Uma lei que acabou com a triagem racial do sistema de quotas migratórias que barrava a entrada de asiáticos e africanos e privilegiava a entrada de europeus do norte e do oeste e não os do sul e do leste. Latino americanos... Por favor! Porém, depois da mudança na lei, eles chegaram aos montes. E trouxeram na bagagem essa mania de correr atrás da bola, driblar, dar passes inesquecíveis e balançar a rede com um gol.

Não satisfeita com a forte reação negativa à primeira coluna sobre o tema, na qual disse que o futebol não deveria ser considerado um esporte já que quase ninguém se mata ou morre em campo, como nos jogos de hockey ou de futebol americano, e já que não existe a consagração de talentos individuais! Juro que foi o que ela disse. Sentenciou: o futebol é um esporte não-americano. Na segunda coluna, publicada no fim da semana, ela segue com a provocação. Diz que o futebol é um esporte de maricas no qual os perdedores choram diante das câmeras. E tudo pode acabar em empate. Sem vencedor ou perdedor.

Eu desconfio que Dona Ann não aguenta ver os Estados Unidos participar de um evento esportivo mundial no qual, até hoje, não tem chances de se sagrarem campeões. Eles estão acostumados a ganhar todas (apesar de fracassarem em todas as guerras, desde o Vietnã). A arbitrar a grande partida da geopolítica mundial. De interferir nos assuntos internos de outros países para garantir acesso a essa ou aquela riqueza. A agir com completo desprezo às decisões coletivas de organizações como a ONU (lembra da decisão do Conselho de Segurança contra a invasão do Iraque?). Se fosse outro país...

No futebol, eles não conseguiram ainda chegar perto do domínio que já têm em tantos esportes olímpicos. Também nunca foram elogiados pela imprensa mundial, da forma como o Brasil tem sido, quando sediaram a Copa de 94 e as Olimpíadas de Atlanta. A eficiência e a segurança reforçadas não deram a ninguém a alegria e o deleite que se vê descritos pelos jornalistas enviados ao Brasil agora. Eu fico com a coluna de Santiago Solari, publicada no jornal El País, com o título: “A Copa mais bonita da história”. Depois de versar sobre o que tem visto em campo, o domínio da bola, as ideias e táticas que se desafiam em cada partida, ele tirou um dia de folga e foi jogar futevôlei no Leblon, no Rio. Entendeu tudo quando a bola voou longe e foi parar no meio da Avenida Delfim Moreira. Quase acontece um engavetamento porque o motorista do ônibus que se aproximava parou bruscamente para que ele pegasse a bola. Solari concluiu: este é o rápido aprendizado cultural. Em Londres, você logo aprende a olhar para a direita antes de atravessar, em Roma, a pedir um macarrão al dente. No Rio, os motoristas param para a bola como se ela fosse uma criança. E por isso, diz ele, esta só poderia mesmo se tornar a Copa mais bonita da história!

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