Por monica.lima

Inversão fiscal. O nome é bom. E trata mesmo de uma inversão completa. De valores, fiscais e morais, de direitos e deveres, de compromisso básico com a sociedade. E quem pode se espantar considerando a realidade em que vive a maior parte do planeta hoje? No capitalismo dominado pelos interesses financeiros, o que conta é única e exclusivamente o lucro. Vale mais quem faz com que ele cresça. O resto é balela. Daí a inversão, a manobra através da qual uma grande corporação norte-americana compra uma empresa pequena em outro país e transforma a empresa comprada em sede oficial do novo grupo, para efeito fiscal.

A compradora passa a ser tratada como subsidiária e os impostos são pagos no novo país-sede. Claro, um canto qualquer do planeta onde as alíquotas sejam mais baixas. O mais incrível é que essa operação não tem nada de ilegal. É tudo feito direitinho, dentro da lei.

Pudera... Os interessados nessa inversão têm lobby forte e organizado no Congresso. Derrubam qualquer tentativa de moralizar o que não passa de um grande esquema de sonegação que cresce ano a ano e já prejudica a economia dos Estados Unidos. A discussão a respeito dessa manobra de inversão fiscal voltou à tona essa semana com o anúncio da intenção de compra da cadeia canadense de cafés e doughnuts Tim Hortons por parte do Burger King. Uma operação de US$ 11 bilhões da qual participaria o investidor Warren Buffet, sempre tão interessado em aumentar os impostos dos ricos norte-americanos para resolver os problemas sociais do país. Quem explica?

O Burger King, assustado com as mensagens negativas que recebeu no Facebook e a mobilização em torno de um possível boicote (até eu recebi um e-mail pedindo adesão) veio à público esclarecer que o objetivo da compra não era fugir dos impostos nos Estados Unidos e ainda prometeu manter a sede da empresa em Miami, onde opera há 60 anos. Mas isso não impede que o endereço fiscal se mande para o Canadá e, com ele, os impostos devidos nos Estados Unidos.

Fato é que o Burger King não inventou a tal da inversão. Em julho, a empresa farmacêutica AbbVie comprou a europeia Shire e foi aplaudida em Wall Street porque vai poder mudar a “cidadania fiscal” para a ilha de Jersey, na Grã-Bretanha. No ano passado, a empresa faturou US$ 10 bilhões apenas com a venda do remédio Humira, para artrites. No próximo ano fiscal, vai pagar 13% de imposto de renda e não mais 22%. Com isso, o tesouro americano vai perder algo em torno de US$ 1,3 bilhão nos próximos seis anos.

Os exemplos se multiplicam. Os bancos agora têm gente especializada em “vender” essa manobra aos clientes e faturam uma bela comissão com cada operação. No começo do ano, a Pfizer tentou comprar a britânica AstraZeneca com a intenção declarada de pagar menos imposto. Apesar da oferta de US$ 118 bilhões, não conseguiu fechar o negócio. Mas voltou à carga agora. Quando a primeira negociação estava em andamento, conversei com o Doutor Lawrence Steinman, da Universidade Stanford, que criou um conceito novo para o tratamento da diabetes tipo 1. Uma vacina reversa, que suspende o trabalho do sistema imunológico quando ele tenta atacar as células do corpo que produzem insulina.

A primeira rodada de testes com a vacina foi animadora. O Dr. Steinman precisa agora de fazer um teste mais amplo, de longo prazo, que exige um investimento de US$ 2 milhões. Ele estava revoltado. Imaginar que uma empresa como a Pfizer tem dinheiro para comprar a AstraZeneca por US$ 118 bilhões, só para fugir do leão norte-americano, mas não tem US$ 2 milhões para desenvolver uma vacina para a diabetes tipo 1... Uma grande inversão.

Ninguém sabe exatamente o tamanho da sangria, mas imagina-se que com essas inversões todas, o tesouro americano pode deixar de arrecadar US$ 20 bilhões de dólares na próxima década. Enquanto isso, as empresas registram lucros cada vez maiores: segundo o Departamento de Comércio, as corporações norte-americanas lucraram US$ 93 bilhões a mais no ano passado do que no ano anterior, mas pagaram US$ 15 bilhões a menos em impostos. Isso para não falar no dinheiro estacionado no exterior que não volta ao país diretamente para não deixar a parte do leão na porta de entrada. Outra manobra muito lucrativa já que as empresas só precisam pagar impostos sobre o lucro quando ele entra no país. Segundo a empresa Audit Analytics, o volume de dinheiro que foge dos impostos devidos nos Estados Unidos, dessa maneira, subiu de US$ 1,1 trilhão em 2008 para US$ 2,1 trilhões em 2013, o que supera o PIB da Rússia!

Resta saber quando tudo isso começou. Infelizmente, volta-se ao governo Bill Clinton, o mesmo que acabou de vez com a lei (Glass Steagall Act) que separava bancos comerciais de bancos de investimento e deixou o mercado financeiro à vontade para construir a catástrofe que explodiu em 2008. Pois foi Robert Rubin, então Secretário do Tesouro de Clinton (mais tarde principal executivo do Citigroup e co autor da crise das subprimes no mercado imobiliário) que mudou a regra do jogo. Para “simplificar” a declaração de imposto de renda das corporações, ele permitiu que elas indicassem quais eram as subsidiárias relevantes para efeito de imposto de renda. Basta indicar na declaração. Simplificou mesmo. A partir daí as empresas passaram a transferir o lucro para certas subsidiárias em paraísos fiscais e as indicavam como não relevantes.

Quando o tesouro tentou voltar atrás, lobistas contratados por empresas como Monsanto, Morgan Stanley, IBM e Philip Morris entraram em ação e o governo Clinton recuou. Depois do presente de Rubin às empresas, em 1997, foi a vez do governo Bush. Em 2004 ele propôs, e o Congresso rapidamente aprovou, uma redução drástica na alíquota do imposto devido pelas empresas que tinham dinheiro estacionado no exterior. Com a taxa de apenas 5,25%, muitas toparam e trouxeram o dinheiro de volta. As 15 maiores do grupo repatriaram US$ 150 bilhões, demitiram 20 mil funcionários e de cada dólar repatriado, entre 60 e 92 centavos foram parar nas mãos dos acionistas. Ou seja, o dinheiro não produziu nada para o país.

Agora, o presidente Barack Obama vive reclamando da situação. E qual é a saída que o Congresso propõe? Reduzir bastante a alíquota do imposto de renda para que as empresas não queiram buscar vantagens em outra freguesia. A inversão não é completa?

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