A história estava muito mal contada para ser verossímil. E os detalhes... Por favor! Quem poderia acreditar que uma pessoa teria condições, sozinha, de se debater e espernear até fraturar três vértebras? Mas essa era a insinuação principal do relatório da investigação sobre a morte de Freddie Gray feito pela polícia de Baltimore. Os fatos incontestáveis são: o rapaz, de 25 anos, foi detido no dia 12 de abril, na rua, sem motivo aparente, colocado em uma viatura que fez três paradas antes de chegar à delegacia e lá se constatou que ele estava inconsciente. Freddie Gray foi internado com a coluna fraturada e morreu no dia 19. A morte provocou protestos quase diários em Baltimore. No dia do enterro, segunda-feira passada, o ódio de décadas de maus tratos, abandono e falta de perspectiva explodiu e aí sim, se tornou assunto digno de notícia no país.
Como quase sempre acontece, a imprensa americana desembarcou em Baltimore com suas frases feitas e preconceitos de longa data. A melhor análise do trabalho dos jornalistas de televisão foi feita pelo comediante John Stewart. Ele pegou o âncora Wolf Blitzer da rede CNN para servir de exemplo. Prato feito! Enquanto um grupo de jovens de Baltimore saqueava lojas e apedrejava carros de polícia, Blitzer repetiu, várias vezes, no ar: “é difícil acreditar que isso esteja acontecendo em uma grande cidade americana”. Stewart transformou a afirmação inacreditável em cena cômica porque a repetiu no programa que tem na tevê e ficou mudo, com cara de bobo. Como quem diz: esse cara chegou de Marte hoje ou o que?
Esta é a grande ofensa com a minoria afro-americana. Fazer de conta que ela não existe. Varrer para debaixo do tapete os problemas históricos que ela enfrenta e desconsiderar as reivindicações que ela faz, de forma organizada ou explosiva, não importa.
Talvez Wolf Blitzer não saiba que enquanto a taxa de desemprego no país está em torno dos 5%, entre os negros de Baltimore ela chega a 35%. Nos anos 50, Baltimore era uma cidade vibrante, embalada pela indústria. Os empregos foram embora, a população caiu para pouco mais de 600 mil moradores. As casas abandonadas e a ponto de ruir estão por toda parte. A população pobre e majoritariamente afro-americana de Boston enfrenta os mesmos problemas que afligem outras comunidades de baixa renda dos grandes centros urbanos do país: péssimas escolas, desemprego e altíssimo índice de jovens e homens presos, alimentando sem parar as penitenciárias.
Boa parte dos jornalistas aqui repetiu o mantra: a violência não vai resolver nada, vai só agravar a situação. Um deles, da rede MSNBC, perguntou ao vivo a uma estudante de Baltimore se não era preciso, antes de mais nada, parar com a violência, com o quebra-quebra. Com toda a tranquilidade, ela perguntou aonde estava a imprensa durante as duas semanas de protestos pacíficos que a população organizou, cobrando explicações para a morte de Freddie Gray. “As câmeras e os helicópteros de vocês não estavam aqui mas bastou nós queimarmos dois prédios e vocês apareceram. É incrível que ainda hoje seja necessária uma tragédia para vocês nos ouvirem”.
E não é de hoje que eles estão gritando contra a desigualdade econômica, contra a falta de oportunidades e contra a violência da polícia que, como disse Stewart, tem a difícil missão de manter invisível essa população marginalizada dentro da sociedade norte-americana. Um levantamento do jornal Baltimore Sun mostrou que entre 2011 e 2014 a polícia de Baltimore foi obrigada a pagar quase US$ 6 milhões de dólares em indenizações por conta de violações de direitos civis e uso excessivo da força. No mesmo período, os policiais da cidade mataram 109 pessoas, 69% delas eram negras. A socióloga da Universidade Harvard fez um outro levantamento revelador. Constatou que os brancos que têm ficha na polícia arrumam emprego mais facilmente do que os negros que nunca foram detidos.
Entra em cena a advogada Marilyn Mosby. Filha de policiais, sobrinha de policiais, ela decidiu concorrer ao cargo de promotora pública de Baltimore (aqui, eles são eleitos diretamente) e fez campanha prometendo combater a violência e a impunidade da polícia. Marilyn Mosby, 35 anos, afro-americana, assumiu o cargo há quatro meses. Na sexta-feira, fez o que deveria ser de se esperar, mas chocou o país e provocou gritos de comemoração nas ruas de Baltimore. Ela responsabilizou os policiais pela morte de Freddie Gray, mandou prender e vai processar todos eles: seis brancos e seis negros.
Assim que Freddie Gray morreu, ela despachou um grupo da promotoria pública chamado Unidade de Integridade da Polícia (dispensa explicações) para investigar. Diz ela que eles trabalharam 14 horas por dia e acreditam ter indícios e provas suficientes para condenar os seis. Uns por má conduta, outros por prisão sem justificativa, dois deles por agressão e homicídio doloso e um deles por homicídio culposo. Munida do relatório da polícia, da análise do instituto médico legal e do resultado da investigação independente que mandou fazer, ela anunciou a decisão e disse aos manifestantes de Baltimore e do país:“eu ouvi o grito de vocês de que sem justiça não há paz. Vocês sinceramente necessitam de paz enquanto faço o meu trabalho para fornecer justiça em nome desse rapaz”.
Foi um passo e tanto em um país onde não se ouve falar de policiais indiciados por abuso da força e muito menos por assassinato, apesar dos números alarmantes de mortos nas mãos dos policiais — na maioria afro-americanos. Marilyn Mosby está cumprindo o que prometeu aos eleitores. O anúncio, histórico, foi apenas o primeiro passo. Ela agora vai abraçar o desafio maior. Provar na justiça que os homens armados, pagos para proteger a população, volta e meia são os que tiram a vida de inocentes.