Por lucas.cardoso
Tóquio - Eles recitam orações em japonês, latim e até português, transmitidas oralmente de pai para filho há mais de 400 anos: os "kakure kirishitan", ou cristãos ocultos, representam o grupo mais secreto, e cada vez menor, do cristianismo no Japão.
Figura de Maria Kannon (como era chamada a Virgem Maria no Japão)Reprodução Internet

As rezas, em idiomas que às vezes eles nem conhecem, são preservadas apenas na memória dos fiéis, descendentes daqueles que no passado foram obrigados a esconder sua fé para fugir da perseguição, da tortura e do assassinato.

O diretor americano Martin Scorsese recupera agora essa história e a apresenta em "Silêncio", filme protagonizado por Andrew Garfield e Liam Neeson, e previsto para estrear no Brasil na primeira semana de fevereiro.

Baseado no romance homônimo do escritor Shusaku Endo (1923-1996) e publicado em 1966, o longa narra o desespero dos missionários jesuítas portugueses no século XVII ao se depararem com o silêncio de seu Deus frente às torturas cometidas pelas autoridades japonesas contra os cristãos.
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O conceito "kakure kirishitan" se origina nos anos seguintes à derrota dos camponeses japoneses - a maioria católicos - contra o xogum (chefe militar) Tokugawa Ieyasu na Rebelião de Shimabara (1637-1638).
Até então, e desde que o missionário espanhol Francisco Javier introduziu a religião no Japão em 1549, o catolicismo tinha sido - salvo raras exceções - bem recebido e prosperado principalmente em Kyushu, com Nagasaki como centro da Igreja.
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Por volta do final do século XVI eram mais de 300 mil os convertidos. No entanto, os poderosos senhores feudais acharam que a entrada de uma religião estrangeira enfraqueceria o poder que eles tinham. Foi então que cerca de 5.500 cristãos foram assassinados no Japão, segundo estimativas.
Perante a perseguição, o catolicismo se viu obrigado a se disfarçar. A religião estava pouco consolidada naquela época no país e foi se misturando às religiões já existentes - principalmente o budismo -, dando lugar a uma religião híbrida.
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"Dado que a mera tradução gerou muitos mal-entendidos, inclusive do conceito de Deus, a tendência era usar palavras estrangeiras", explicou à Agência Efe Renzo De Luca, padre argentino e diretor do Museu dos 26 Mártires em Nagasaki.

Com o passar do tempo, no entanto, as imagens santas e a figura da Virgem Maria foram ganhando aparência cada vez mais próxima às tradicionais estátuas de Buda, e o "Pai Nosso" e a "Ave Maria" adaptados a cânticos budistas.

"As orações e celebrações foram disfarçadas para que não revelassem o conteúdo cristão e para evitar suspeitas e perseguições. Ao invés de usar pão e vinho, por exemplo, realizam a missa com arroz e saquê", detalhou De Luca.

Depois da proibição do catolicismo no país, a ausência de padres deixou o batismo de novos cristãos nas mãos de pessoas alheias ao clero. Com a reintrodução da crença no Japão em meados de século XIX, alguns "kakure kirishitan" voltaram a se unir à Igreja e, atualmente, os católicos representam pouco menos de 1% da população, já que alguns não reconheceram o catolicismo como fé original de seus ancestrais.

Séculos de ocultação e isolamento transformaram sua religião em um culto totalmente diferente, ainda cercado de certo mistério. "Acho que estamos chegando ao fim de um movimento religioso que teve importância em uma situação social que já não existe e, portanto, perdeu grande parte de seu significado", concluiu De Luca.

Com a estreia de "Silêncio", Scorsese cumpre um sonho que manteve por quase 30 anos: levar à telona a origem deste misterioso culto japonês que pode desaparecer.