Por leonardo.rocha

Rio - Faltando pouco mais de seis meses para acabar o mandato da presidente Dilma Rousseff (PT), o governo federal repassou apenas R$ 1,09 bilhão aos Estados e municípios que aderiram ao programa “Crack, é possível vencer”, segundo a Confederação Nacional dos Municípios (CNM). O valor equivale a 27,2% dos R$ 4 bilhões anunciados no lançamento do programa, em dezembro de 2011.

O presidente da CNM, Paulo Ziulkoski, disse que a verba é insulficiente para que os municípios criem medidas eficientes para enfrentar o problema. “O dinheiro que viria em socorro aos municípios não chegou para a maioria deles. Ou seja, o financiamento das ações de políticas públicas em setores como saúde, educação, assistência social e segurança pública ficaram prejudicados, o que nos permite dizer que o valor investido é ínfimo para trabalhar a questão do crack.”

Comboio de vans com usuários de crack recolhidos durante operação no Rio de JaneiroDivulgação


Pelas regras do programa, o munícipio tem que ter mais de 200 mil habitantes para receber ajuda federal. De acordo com Ziulkosk, a regra tira mais de 3.900 municípios de pequeno porte, com até 50 mil habitantes, dos planos da União.

“O valor é repassado primeiramente ao Estado que pactuou com o programa. Somente depois é que os municípios que efetuaram a pactuação com o Estado poderão receber o repasse. O detalhe é que o valor é diretamente proporcional ao número de habitantes, e nessa jogada, apenas municípios com mais de 200 mil habitantes podem receber a rubrica. As prefeituras são as que mais recebem a demanda de usuários de crack. É lá, no município, na ponta, onde os problemas aparecem e precisam ser resolvidos. E não é fácil. Com as políticas verticalizadas que o governo desenvolve fica muito difícil, principalmente para os municípios de pequeno e médio porte - a maioria no país - ter acesso a qualquer que seja a forma de financiamento”, diz ele.

De acordo com informações do Ministério da Justiça, 118 municípios, em 26 Estados, e o Distrito Federal aderiram ao programa.

Se quando chegou ao Brasil, no início dos anos 90, o crack ficava restrito ao guetos das grandes cidades, hoje ele está em todo o País. Atualmente são 370 mil usuários, segundo levantamento da Fundação Fio Cruz. Pesquisa do Observatório do Crack, realizado pela CNM, com base em questionamentos feitos aos gestores municipais, aponta que 88% das cidades brasileiras têm problemas com a circulação desse tipo de droga.

Entre os municípios que disseram ter problemas relacionados ao consumo de crack, a incidência alta aparece em 26% das respostas; 47% dos gestores classificaram como médio e 26% afirmaram que o consumo de crack nas respectivas cidades é baixo.

Assistência

Se por um lado o crack está presente na maior parte das cidades do País e o consumo é classificado como médio ou alto na maior parte delas, a assistência ao usuário não acompanha o mesmo ritmo. De acordo com o relatório, apenas metade (49,4%) do municípios do País realizam políticas para o enfrentamento das drogas. Mesmo assim, diz Ziulkoski, as ações ainda são insulficientes.

“A rede de assistência social e saúde disponíveis nessas localidades é insuficiente para tratar a demanda existente de forma integrada ou intersetorializada. Se for formos pensar em um fluxo de atendimento, que engloba o acolhimento, o tratamento e a reinserção social de usuários de drogas, a maioria dos municípios não dispõe de todos os serviços ao mesmo tempo”, diz Ziulkoski.

O relatório Observatório do Crack cita ainda a “fragilidade da rede de atenção básica ao usuário de drogas, falta de leitos para a internação, espaço físico inadequado, carência na disponibilidade de remédios e da ausência de profissionais especializados na área da dependência química”.

Questionado sobre a aplicação das verbas, o Ministério da Justiça informou que a Casa Civil seria responsável. O iG entrou em contato com a pasta na última quarta-feira (28) e até o fechamento desta reportagem não obteve resposta.

São Paulo

Em paralelo ao programa de enfrentamento do governo federal, Estados e municípios investem em programas próprios. De acordo com o levantamento, do total dos investimentos contra a droga em 2012, a maior parte vinha do próprio município.

“Em relação ao financiamento, o que pode-se analisar é que a maior parte dos investimentos ainda está sendo feita pelos municípios, somando um total de R$ 2.972.534,57, em seguida temos os investimentos federais com o montante de R$ 1.548.555,09, logo atrás o financiamento específico do Plano Nacional de Enfrentamento ao Crack, com o valor de R$ 354.345,39, e por fim, o repasse estadual chegou ao valor de R$ 209.081,00", aponta o documento.

Entre os programas geridos pelo próprio município, um dos mais emblemático e polêmico é o “De braços abertos”. Lançado em janeiro, o programa oferece moradias em hotéis, emprego em frentes de trabalho, renda de R$ 15 por dia, três refeições e curso de capacitação para 429 dependentes químicos da região da Cracolândia, no bairro da Luz, na região central.

Segundo o padre Julio Lancellotti, da Pastoral da Rua, o programa é “pontual”. “O De Braços Abertos é um projeto pontual, não é politica pública, que seja aberta para cidade porque o braço não é aberto para toda a cidade. O crack está só na Cracolândia?”, questiona ele.

Para o psiquiatra Luís Fernando Tófoli, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), o mérito do programa é se basear na chamada redução de danos, em que tratamento se aposta na redução progressiva do uso de substâncias químicas.

“Ações para pessoas que não conseguem ou não querem parar o uso são extremamente necessárias em cenários de uso desse tipo. Uma pesquisa recente da Fiocruz mostra que, no Brasil, 80% dos usuários querem tratamento. É preciso, assim, saber que tratamento é o mais eficiente em um ambiente onde a privação social é um elemento extremamente presente. Focar somente em abstinência nesse cenário é inadequado e ineficiente”, diz. No entanto, ele diz que apesar de “bem intencionado”, falta planejamento ao programa.

“Minha principal crítica resume-se na impressão de que, apesar de estar bem direcionada em intenções que me parecem ser as mais adequadas para a problemática, falta planejamento. Há relatos de desacordo entre instâncias municipais, inconsistências nas declarações do prefeito [Fernando Haddad], que louva os usuários e condena os traficantes, quando se sabe que inúmeros destes usuários fazem o chamado narcovarejo para sobreviver, e relatos de experts na área de redução de danos de que suas opiniões e experiências não são ouvidas de forma efetiva”.

Já o defensor público Carlos Weis diz que o programa trata o crack como um problema da assistência social e saúde e não de polícia. “ É a primeira vez, no Brasil, que essa situação é tratada como caso social, e não policia. É um atendimento multidisciplinar, que é prevê assitência social, psquiatrica, saúde, psicologia, trabalho. É aquilo que as normas de direito prevêem para o enfrentamento da situação”.

Ele diz que as políticas de enfrentamento ao crack até então têm pautado na "caça" aos usuários. “No Brasil, as operações de caças ao usuário de droga são uma coisa absurda e violam o direito de qualquer um. Eles são caçados pela polícia", diz lembrando as ações do ex-prefeito Gilberto Kassab (PSD), do governador Geraldo Alckmin (PSDB) e da polícia do Rio de Janeiro, que terminou com a morte de uma criança de dez na avenida Brasil.

Em 2012, a política de enfrentamento ao crack da gestão do ex-prefeito Gilberto Kassab (PSD), e do governador do Estado, Geraldo Alckimin, conhecida como Operação Cracolândia ou Operação Sufoco, usou a Polícia Militar para repreender os usários de crack na região e afastá-los para fora do centro da capital. A ação foi alvo de denúncias de abuso dos direitos humanos. No ano passado, o governo estadual lançou o programa Recomeço, que prevê entre outras medidas, plantão judiciário no Centro de Referência de Álcool, Tabaco e Outras Drogas (Cratod) para aprovação imediata da internação involuntária.

Apesar de divergirem em diversos pontos, os três especialistas de diferentes áreas são unânimes ao dizer que para dar certo, o programa tem que observar a vida pregressa do dependente e a sociedade e o poder público olhar os usuários como seres humanos.

“É um problema social. Quando chegam ao crack já tem um problema por trás, uma desagregação familiar. É um problema social e não individual”, diz Weis.

“O uso da droga é um sintoma. Os usuários dizem que o problema não é o crack, o problema é a vida, as questões afetivas, as perdas de referências e as ausências de satisfações de direitos”, afirma Lancellotti.

A prefeitura informou que 429 pessoas (274 homens e 155 mulheres), estão cadastradas no programa. Desse total, 318 estão trabalhando.

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