Por bferreira

Rio - Os efeitos devastadores do crack — um subproduto da cocaína e portanto de baixo custo — já atingem 370 mil brasileiros, escravos da droga, que, quando não leva à morte, arruína vidas e sonhos de milhares de famílias, parentes de usuários. Os números levam em conta apenas viciados nas capitais. E o mais assustador é que, desse universo, 50 mil usuários de crack (14%) são crianças e adolescentes.

Os dados, divulgados ontem, são de pesquisa da Ficruz. É o maior levantamento sobre o tema já feito no mundo. Foram entrevistadas 25 mil pessoas de 27 capitais. Para o ministro da Saúde, Alexandre Padilha, a pesquisa confirma a epidemia de crack que afeta o país.

Clique na imagem acima para ver o infográfico completoReprodução

De acordo com levantamento, o número de viciados representa 0,8% da população total das capitais. Um dado surpreendente foi a maior parte dos usuários não estar na região Sudeste. Cerca de 40% dos viciados vivem no Nordeste. A pesquisa ‘Estimativa do número de usuários de crack e/ou similares nas Capitais do País’ foi idealizada pela Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (Senad), do Ministério da Justiça.

“Surpreende a presença de forte consumo no Nordeste e no Sul. Cabe agora um olhar especial a essas regiões”, avalia o secretário da Senad, Vitore Maximiano. Os números foram coletados em 2012 e referem-se a consumidores de ‘crack e/ou similares’ (pasta-base, merla e oxi).

Os usuários consumiram a droga por pelo menos 25 dias nos últimos seis meses. Na pesquisa, cada indivíduo respondeu a questões sobre familiares e conhecidos do mesmo município.

Os viciados em crack já são 0%2C8% da população de todas as capitaisDivulgação

O ministro da Saúde informou que há R$ 2 bilhões disponíeis para ações contra a droga. “A pesquisa mostra que há uma epidemia de crack no nosso país. Precisamos expandir ainda mais os serviços”, disse.

Para Vitore, é preciso ampliar os serviços de rua. “O tratamento deve começar na abordagem e no convencimento para o início de um tratamento”. Segundo ele, são necessários centros que ofertem também capacitação profissional. “Os usuários querem oportunidades. Além disso, o melhor instrumento de prevenção é a familia e a escola”.

Programa da prefeitura esbarra em integração de órgãos municipais

O Rio de Janeiro anunciou o Plano Municipal de Combate ao Crack em abril deste ano, mas ainda não apresentou resultados que confirmem o proveito do programa. De acordo com o superintendente de saúde mental da Secretaria de Saúde, Leonardo Araujo, o maior desafio é articular todos os setores para combater a droga. “Não é apenas uma iniciativa que vai dar conta de algo tão complexo. Envolve unidades clínicas, questões sociais e segurança pública”, explicou.

Questionado, o gestor também rechaçou que a internação compulsória possa resolver o problema do crack. “A questão não é como a internação acontece, mas o que é esperado dela. Nem sempre é necessária”, defendeu Leonardo, ressaltando trabalhos como o dos Centros de Atenção Psicossocial (unidades fixas de atendimento terapêutico) e as equipes itinerantes que oferecem abrigo e reintegração aos usuários. “Temos uma política individualizada. Cada indivíduo tem uma necessidade específica”, completou.

Pesquisa feita com usuários mostra que quase 80% desejam iniciar tratamento

Entre o final de 2011 e junho de 2013, a Fiocruz realizou outro levantamento em que entrevistou 7.381 usuários de crack a partir de 18 anos de idade. A pesquisa com 400 perguntas foi feita em 112 municípios, incluindo capitais e cidades de pequeno e médio portes.

Metade dos usuários tem até 30 anos, 78,7% são homens e 35% são considerados em ‘situação de rua’ ou sem teto. Quase 80% dos dependentes deseja tratamento para uso de entorpecentes. Porém, apenas 6% foram a algum centro social nos 30 dias anteriores ao levantamento.“Há um forte componente de exclusão social no uso de crack. Isso mostra como é importante a oferta de múltiplos serviços, sociais e de saúde”, disse Vitore Maximiano.

‘Vontade e curiosidade’ motivaram 58,3% dos viciados a iniciarem o uso do crack. Para 29,2%, a razão foi perda afetiva, problema familiar ou violência sexual. Apenas 1,3% dos entrevistados relatou que o consumo foi motivado pelo baixo preço da droga.

Pesquisadores fizeram ainda uma abordagem especial às mulheres usuárias. Cerca de 10% delas estavam grávidas no momento da entrevista. Além disso, 46% já engravidaram, ao menos uma vez, desde que iniciaram o uso de crack. Dentre as mulheres, 44,5% relataram já ter sofrido violência sexual na vida. Em relação à prática sexual em troca de dinheiro ou drogas, 29% das mulheres relataram a prática.

Para 64% de todos os viciados, o dinheiro para droga vinha de trabalho autônomo. Já 9%relataram praticar furto ou roubo. Metade dos usuários de crack já havia sido presa.

Droga alavanca contaminação por HIV

A contaminação pelo vírus HIV entre os usuários de crack mostrou-se oito vezes maior do que na população em geral, segundo o levantamento. Pelo menos 5% do grupo que consome regularmente a droga são soropositivo, enquanto o índice entre a população brasileira é de 0,6%. Casos de hepatites virais e overdose também acabam impulsionados pelo vício.

O panorama é explicado por hábitos dos usuários entrevistados: mais de um terço (39,5%) admitiu não ter usado preservativo em nenhuma relação sexual nos 30 dias anteriores ao estudo. Nas capitais pesquisadas, mais da metade (53,9%) contou nunca ter feito o teste para detectar o vírus — o número nos demais municípios é ainda mais alarmante, chegando a 65,9%.

Outra preocupação é em relação à transmissão de hepatites virais por conta do compartilhamento de objetos para consumo da droga. Os casos de overdose entre os usuários de crack também são altos, 44,7%, o dobro das intoxicações relatadas em ocorrência do abuso de álcool (22,4%).

Para conter este tipo de cenário, a Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro aposta em um programa de redução de danos, oferecendo alternativas capazes de limitar prejuízos associados ao consumo do crack. “Muitos têm DSTs e quadros de tuberculose, mas tentamos controlar essa situação independentemente do uso da droga”, afirmou o superintendente Leonardo Araújo.


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