Rio - Obra fascinante está nas livrarias, imperdível para quem acompanha a política e os políticos: ‘Cartas de Carlos Lacerda’, a mais completa personalidade de nosso mundo intelectual e político no século passado. Merece o título pelo conjunto da obra e da militância de mais de 40 anos, tendo o Brasil perdido este personagem, amado e odiado, no melhor do seu amadurecimento, aos 66 anos. Nem sempre foi o número um, mas sempre bem pontuado em qualquer avaliação.
É que Carlos Lacerda foi um orador fascinante, rápido, irônico; um parlamentar que dominava a cena nos dois anos de Congresso; trepidante nos textos impecáveis; dono de uma cultura invejável. Passou com brilho pelo jornalismo, pela crônica, pela prosa e pela poesia. Como gestor público, foi uma revelação, um realizador e planejador de obras que marcaram o Rio. Sua sensibilidade artística o fez passar pela pintura, conhecer música, amar as flores e a natureza.
Curioso nas cartas é que procura negar a condição de fator decisivo na queda de Vargas, de Jânio e de Jango. Disse horrores do nosso honrado JK, que ele chamava de ladrão e que depois foi visitar em Lisboa, assim como a Jango, em Montevidéu. Mas negava a iniciativa, alegando que foram “encontros”, como se estes pudessem se realizar sem que uma das partes não concordasse. E ele teve a iniciativa!
De sua famosa metralhadora giratória não escaparam amigos que se tornaram, na maioria das vezes, ex-amigos, como os casos de Mario de Andrade, Sobral Pinto, Gustavo Corção e Julio de Mesquita Filho. Era duro e violento em bater em monstros sagrados, como os Robertos — Campos e Marinho — e o marechal Castelo Branco, que foi num crescente para chegar, por fim, ao rompimento. Durante pelo menos dois anos, afirmou ser um dos “líderes da Revolução”, para depois se referir ao movimento como “golpe militar”. Um furacão de incoerência, de ambição, mas de muito talento.
A editora Bem Te Vi, de Vivi Nabuco, sua amiga e filha de Maria do Carmo Nabuco, das poucas pessoas que Lacerda respeitava — e temia —, poderia partir para a reedição de seus livros políticos, como ‘Cão Negro’, ‘Poder das Ideias’, ‘Depoimento’. Assim como também poderia aproveitar os arquivos da ‘Tribuna da Imprensa’, se ainda existirem, para editar os artigos, com notas explicativas de rodapé, que poderiam ser escritas por Helio Fernandes, que assumiu o jornal. Sua dimensão justifica a releitura e proporcionaria às novas gerações a oportunidade de conhecer a obra daquele que foi, com Getúlio Vargas, o mais importante político do século 20, sendo ele o que beirou a genialidade.
Tive pouco contato com esse incrível personagem, uma vez que estava politicamente ligado à facção política do Rio que seguia, com respeito e admiração, Negrão de Lima. Este foi prefeito, depois sucedeu — e superou — Lacerda no governo da Guanabara, e também foi alvo de suas injustas acusações. Mas o fato é que é impossível ignorar esse monumento que, de tão forte presença, não teve em vida e não terá depois de morto a unanimidade a favor ou contra. Exceto no reconhecimento de seu extraordinário talento.
Aristóteles Drummond é jornalista