Por bferreira

Rio - Aconteceu no início da semana passada, durante um café, em Ipanema, com a Nicole Witt, agente literária alemã que representa muitos autores de língua portugues</DC></CO></MC>a. Eu comentei que celulares com acesso à internet são ruins para escritores, desviam o olhar, tendem a monopolizar a atenção, fazem com que se deixe de olhar em volta, representam quase uma concorrência desleal com a vida que corre fora da telinha.

Falei isso e abri os braços, apontei para o entorno. E, nesse momento, vimos, bem ao nosso lado, duas garis numa butique. Uma delas, que deveria ter 55 anos, examinava uma peça, uma blusa ou vestido. Um quase conto se insinuava ali: duas mulheres que ganham salários baixos — o uniforme laranja atestava — analisando roupas numa loja de Ipanema.

A cena permitia várias possibilidades. Um dirigente do PSTU (“Contra burguês, vote 16”) poderia revoltar-se. Afinal, as duas garis saíram de mãos vazias, talvez tenham ficado assustadas com os preços cobrados pelas roupas, valores que, no caso de uma compra, as obrigariam a fazer exercícios de alongamento de salário. Assim, o episódio ajudaria a reforçar a constatação de nossas injustiças e diferenças sociais.

Já algum petista teria motivos para exaltar os ganhos salariais proporcionados pelos últimos governos. Tentaria imitar a voz do ex-presidente Lula e alegaria que nunca antes na história deste país garis foram vistas escolhendo roupas numa loja chique de Ipanema. Antes, diria, as companheiras seriam até barradas pela segurança. Um eleitor do PSDB que estivesse ao lado provocaria o tal militante do PT. Ressaltaria que o aumento do poder de compra daquelas duas trabalhadoras só se tornara possível com a estabilidade econômica proporcionada pelo Plano Real, capitaneado por Fernando Henrique Cardoso ainda como ministro da Fazenda. Dava até para imaginar os personagens discutindo ali mesmo, naquelas mesas. Os cafés e sucos dariam lugar a bebidas mais fortes, compatíveis com a discussão.

Os argumentos dos três são bens razoáveis, complementares, mas prefiro ver a cena de outro jeito, mais modesto. Eram duas mulheres que, numa manhã ensolarada de terça, deram uma fugidinha do trabalho para sonhar um pouco. É possível que uma delas tivesse pedido ajuda da outra para escolher uma roupa especial, que seria usada num casamento, num baile de debutante ou na formatura da filha. A ida à loja ajudava a antecipar a comemoração, a festa começava ali. Por sorte, na hora eu não estava grudado na tela do celular.

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