Por bferreira

Rio - Sou um carioca cismado com uma ideia: a cidade do Rio pode ser pensada como um terreiro de encantaria encravado entre a montanha e o mar. Baixam por aqui as falanges ameríndias, europeias e africanas e se bobear dança todo mundo na mesma gira. De vez em quando, eu diria até que muito frequentemente, os encantados de falanges diferentes saem no cacete e a curimba esquenta. Eventualmente, porém, as entidades se abraçam - e é aí que a roda ritual bordada pelos tambores fica mais bonita.

Os mais velhos contam que encantados não tiveram morte física. Transmutaram-se em pedras de rio, areias e conchas de praias, ondas do mar e cumes de montanhas. Imagino, portanto, Estácio de Sá encantado no Pão de Açúcar, mil tupinambás encantados nas praias da Guanabara e um Zé Pilintra ajuremado numa esquina perto do São Carlos.

Pereira Passos está encantado numa águia do Theatro Municipal. Cartola ajuremou numa pedrinha miúda da subida do Pendura Saia, Noel encantou-se nas calçadas do Boulevard e Jamelão virou jequitibá do samba. Aracy de Almeida encantou-se no Encantado mesmo. Estão todos por aí, prontos para baixar, dançar, dar conselhos, passes e o escambau. Registre-se que o terreiro também é cheio de encosto de capitão do mato que quer atrapalhar a firmeza do riscado da pemba. O Maracanã perdeu o axé do fundamento.

Para entender a gira no Rio de Janeiro, acho ainda que é necessário compreender e vivenciar as funções das festas. Esclareço melhor: vejo as festas da cidade como um conjunto de ritos onde relações tensas e intensas entre as diferentes camadas sociais disputam espaços e inventam formas de vida. A cidade é território de afeições e ódios, entre batuques, beijos, furtos, comidas e cantos. Morte e vida cariocas; cidade de flor e faca.

Entrudos, corsos, batalhas de confetes, Festa da Penha, rodas de capoeira, blocos de arenga, rodas de pernada, ranchos, cordões, grandes sociedades, escolas de samba, onças do Catumbi e caciques de Ramos, bailes e gols, dão pistas para se entender como as tensões sociais — disfarçadas ou exacerbadas — bordam as histórias da cidade-terreiro; ou das cidades que formam o grande terreiro. A festa foi espaço de subversão da cidadania roubada. Inventou-se na rua a cidade negada nos gabinetes.

Disciplinar a rua, ordenar o bloco e enquadrar a festa, por sua vez, foi a estratégia do poder instituído na maior parte do tempo. Fruto do embate entre a tensão criadora e as intenções castradoras — e o jogo está longe de terminar — a gira carioca dos encantados continua firme.

E-mail: luizantoniosimas67@gmail.com

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