Por bferreira

Rio - Minha crônica caiu no 11 de setembro. Caiu é um exagero, verbo da tragédia que transformou o mundo. Naquele dia, mais tarde, o Teatro Rival anunciava em seu letreiro estelar o lançamento do novo disco do craque Guilherme de Brito, o eterno parceiro de Nelson Cavaquinho. Magro feito uma baguete francesa, repetia sem pudor ter sido fiel ao companheiro de “A Flor e o Espinho” e “Folhas Secas”, não se importando com as escapulidas de Nelson em suas infinitas madrugadas.

“Samba Guardado”, título do CD, prometia alguns sambas inéditos da dupla. Fiz a produção ao lado do imbatível Paulão Sete Cordas, um dos maiores conhecedores do estilo na atualidade. Guilherme já tinha lá seus 80 anos e, mesmo assim, fumava um maço de cigarros em dias de gravação. No intervalo, doses de conhaque faziam brilhar seus olhos verdes. Dizia: “Paulão que me ensinou a beber”. Riso tímido, a conversa emendava pra lembrar das guimbas deixadas por Noel Rosa num bar na Teodoro da Silva: “Fumei todas”.

Fujo da coincidência das datas.

Guilherme pintava quadros com motivos de samba. Inspirado, arriscou um papagaio na tela branca. Havia prometido levar suas obras para expor num show que faria no Japão, 30 horas de distância de Bonsucesso, seu último endereço. Pensar que aquele homem, alto de torcer o meu pescoço, ficou sentado, ausente da nicotina, numa classe pra lá de econômica, esse tempo todo, me dói a consciência.

O Oriente prestigia nossos baluartes. Aplaudido de pé, a plateia se dirigiu pro salão da vernissage, para conhecer e adquirir os quadros do artista. As pinturas retratam barracos, cães vira-latas e personagens do seu cotidiano musical, Nelson Cavaquinho e Cartola. No meio dessa liturgia carioca, o papagaio. Olhos bem abertos, o japonês fez uma oferta.

Quem conta é o próprio autor: “Quando eu reparei, o papagaio estava chorando, triste demais. Desisti de vender, trouxe de volta pra casa. É aquele ali na parede”. De fato, o louro ria pelo bico, respirando ares da Zona da Leopoldina.

Penso no 11 de setembro, uma data que se transformou em minuto de silêncio. O show teve pouco público. Os aplausos, emocionados, lembravam as nuvens de fumaça daquela manhã. Confesso que ouvi o Guilherme cantando como se fosse o último dia das nossas vidas. No repertório, casado às novidades do novo trabalho, um clássico pra se refletir, “Quando eu me Chamar Saudade”. Aos meus ouvidos, um mantra, caso sobrevivesse.

Ainda gravamos outro disco juntos na produção, mas isso é história pra primavera de outro calendário.

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