Por bianca.lobianco

Rio - “É melhor morrer do que perder a vida”. O desabafo escrito pelo frei Tito de Alencar em um de seus cadernos pouco antes de cometer suicídio em 1974 na França demonstra que ele não tinha enlouquecido. Pelo contrário, estava consciente das sequelas que a tortura tinha deixado em sua mente. Preso junto com outros frades em 1969, naquela que ficou conhecida como a “operação batina branca”, frei Tito foi barbaramente torturado pela equipe de agentes do delegado Sérgio Paranhos Fleury. Apesar de ter sobrevivido, jamais conseguiu conviver com as memórias do que viveu nas mãos da repressão.

Frei Tito foi torturado em 1969%2C na época do regime militarDivulgação

Quarenta anos depois, as jornalistas Leneide Duarte-Plon e Clarisse Meireles recuperam a vida e a trajetória política do frade no livro “Um homem torturado – Nos passos de frei Tito de Alencar”, da editora Civilização Brasileira. A obra que começou a ser planejada no fim de 2011 traz ao público uma extensa pesquisa sobre a vida do religioso que nasceu em Fortaleza, no Ceará, caçula de uma família de 15 irmãos. Entre as novidades que o livro apresenta, estão o relato inédito do psiquiatra e psicanalista Jean-Claude Rolland, que atendeu o frei na França e teve a vida transformada pela convivência com o brasileiro, além das diversas cartas escritas por Tito ao frei brasileiro Magno Vilela e demonstram o seu martírio no fim da vida.

Tito era um dominicano do Convento das Perdizes em São Paulo no início da ditadura militar. Estudante do Instituto de Filosofia e Teologia (IFT) e do curso de Ciências Sociais na USP, o religioso cumpria junto com o grupo de frades um papel de auxílio aos militantes da Ação Libertadora Nacional (ALN), liderada por Carlos Marighella . As atividades, segundo Clarisse Meirelles, se resumiam a ajudar na fuga de pessoas perseguidas ou que corriam risco de vida.

“Ele teve um destino trágico que foi completamente desproporcional com a participação dele na resistência. O Tito tinha uma posição muito crítica sobre os limites da luta armada, via que não era uma causa que penetrava o povo e que pouca gente se engajava para ir às ruas derrubar o regime. Não era um líder. O que ele tinha era muito mais a visão ampla da palavra de Jesus Cristo como transformação e por um regime menos desigual”, afirmou a autora.

Em janeiro de 1971, Tito foi um dos 69 presos políticos trocados pelo embaixador suíço, Giovanni Enrico Bücher. Mas a libertação do carcere piorou a sua saúde. Tito começou a ter alucinações com o que viveu na prisão. Depois de chegar ao Chile, o frei foi para Roma e depois para a França, onde se enforcou em um árvore, num bosque próximo a Lyon, no sul do país. Enterrado no Convento Sainte-Marie de La Tourette, seu corpo foi trazido ao Brasil 10 anos depois.

Clarisse explica que a narrativa foi construída especialmente a partir de três pessoas que tiveram as vidas marcadas pela convivência com Tito. O médico Jean Claude Rolland nunca tinha tratado um paciente vítima de tortura e depois da morte do frei se especializou no assunto: ele é hoje um ativista da luta contra a tortura. Nildes de Alencar Lima, a irmã que criou Tito e última pessoa da família a vê-lo antes da morte em 1973, também deu um importante depoimento sobre o religioso. “Depois que ele morreu, ela foi estudar teologia, entender como ele via a mensagem de Cristo”, conta Clarisse.

O terceiro a ser marcado por Tito foi o frade Xavier Plassat. Os dois conviveram em Lyon no seu último ano de vida e o encontro foi fundamental a ambos. “Eles foram grandes amigos, estiveram muito próximos. Em 1983, quando ele vem para o Brasil para devolver o corpo para a família, ele se apaixona pelo país e decide ficar aqui. Ele mora até hoje no interior de Tocantins e trabalha na Comissão Pastoral da Terra, em campanhas de combate ao trabalho escravo”, explica Clarisse.

Clarisse também aponta que o frei Tito se tornou um mito para muitas pessoas em Fortaleza. Tanto que no memorial criado em sua homenagem dentro do Museu do Ceará o antigo óculos do frei chegou a ser roubado há cerca de três anos. O tumulo do religioso no cemitério da cidade tem constantes peregrinações em função das lendas criadas depois que seu corpo foi trazido ao Brasil em 1983. De acordo com os relatos de quem o viu antes de ser novamente enterrado, o corpo estava praticamente intacto.

Para a outra autora da obra, Leneide, o caso de Tito simboliza as marcas invisíveis que a tortura deixa nas vítimas. “Tito se tornou um símbolo de todos os torturados que se suicidaram e também dos que seguiram vivendo mergulhados nas trevas das salas de tortura ou com sequelas físicas ou mentais “, afirma Leneide.


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