Por tabata.uchoa

Rio - Por 18 anos, ele acompanhou cada passo da Polícia Militar. Conhecia desde o soldado até o coronel de diversos batalhões na década de 80. Participava de operações, apontava traficantes e recebia muito bem por isso. No período, I. era mais do que um informante da PM. Sabia tanto que foi a única testemunha a entregar os 33 policiais envolvidos em uma das maiores chacinas do Rio, em Vigário Geral, onde 21 pessoas foram assassinadas em 1993. Mas I. pagou por isso. Ficou mais tempo preso do que os homens que realmente executaram as vítimas. Hoje, depois de 14 anos na cadeia, o ex-informante volta à tona no documentário ‘À Queima Roupa’, em cartaz no cinema, onde revela detalhes dos bastidores da Segurança no estado.

Cena do filme ‘À queima roupa’%2C sobre chacinas envolvendo PMs. O filme parte do episódio de Vigário Geral%2C onde 21 pessoas morreram em 93Divulgação


I. começou como informante da polícia por acaso. Era vendedor de quadros em Copacabana e recebeu o ‘convite’ de um detetive que estava atrás de um traficante no bairro. Em poucos dias, ele levou as informações até o policial, que prendeu o criminoso, e em troca, recebeu uma boa quantia em dinheiro, o equivalente à venda de quatro quadros na época. A partir deste caso, I. não parou mais. Ficou tão envolvido que passou a andar armado, circulando em viaturas oficiais. “Vivia num mundo perigoso. Tinha a confiança de muitos PMs. Houve época que eu ajudava até a colocar delegado na delegacia que ele queria. Cada dia era um fato diferente e não tinha mais como sair dessa vida”, relembrou.

A Chacina de Vigário Geral foi uma tragédia anunciada, segundo o ex-informante. Dois dias antes do episódio, um poderoso traficante da comunidade armou uma emboscada para quatro policiais, que teriam executado um comparsa do criminoso três semanas antes. A viatura onde estavam os PMs recebeu mais de 200 tiros. Na madrugada do dia 29 de agosto de 1993, um grupo de policiais, conhecido como Cavalos Corredores, invadiu Vigário matando 21 pessoas.

“Eles (os policiais) erraram a mão. É lógico que o mandante do assassinato destes policiais não estaria na favela. Mas os PMs estavam com tanto ódio que executaram quem viram pela frente”, contou I.
A revelação dos envolvidos na chacina ocorreu cinco dias depois do massacre. O ex-informante estava sendo perseguido e quase caiu em uma armadilha. “Me chamaram para fazer um trabalho em Parada de Lucas, para pegar um vagabundo. Marcaram comigo à meia-noite, mas furei, fiquei com receio. No dia seguinte, soube que eu era o alvo”, revelou I. Hoje, apenas um dos 33 policiais condenados pela chacina continua preso.

Documentário sobre o informante está em cartaz em três cinemasDivulgação

Testemunha presa com chefões do pó

Quando resolveu contar tudo o que sabia sobre a Chacina de Vigário Geral, I. revelou diversos crimes envolvendo policiais ocorridos durante os 18 anos em que foi informante. Inicialmente, foi tratado como testemunha, mas logo foi julgado por homicídio, extorsão e peculato, e condenado a 21 anos de prisão. No período atrás das grades, I. circulou por carceragens da Polícia Federal no Rio, São Paulo e Espírito Santo, até chegar à Penitenciária de Catanduvas (PR). O ex-informante inaugurou o presídio de segurança máxima ao lado do traficante Luiz Fernando da Costa, o Fernandinho Beira-Mar. “Se o inferno tem nome, ele se chama Catanduvas”, contou I., que ainda foi vizinho de cela dos chefões do pó Márcio Santos Nepomuceno, o Marcinho VP, e Elias Pereira da Silva, o Elias Maluco.

Corrupção e mortes em sua trajetória

A vida de X9 rendeu a I. histórias que mostram diversos esquemas de corrupção na PM. Uma das mais emblemáticas ocorreu há duas décadas, durante a prisão do chefe do tráfico de Parada de Lucas. “Era o Robertinho de Lucas, o mais procurado. Quando o vi, falei: ‘Perdeu, cara’. E ele disse: ‘Perdeu não, você acabou de ganhar’. Levamos ele para delegacia, mas outro traficante pagou quase R$ 1 milhão pelo resgate, e acabamos trocando ele por outro vagabundo do morro para apresentar a imprensa”, relembrou I.
Em sua trajetória ao lado de PMs, o informante admite ter matado muitas pessoas. A maioria dos corpos era despejada no Rio Guandu. “Tirávamos a roupa e jogávamos lá. Um dia, uma viatura quase caiu no Rio e, para tirar, sequestramos um reboque.” Ele diz que participou da primeira apreensão de fuzil AR-15 no Rio, em novembro de 1989, na Favela de Acari. “Foi um informante que passou para a gente. Gastávamos muito dinheiro com outros X9”.

Outros crimes de PMs na tela

No filme, a chacina é o pontapé inicial para levar à cena outros massacres envolvendo policiais. Mostra depoimentos de parentes das vítimas e autoridades, como promotores de Justiça e coronéis da PM. “Era para ser só sobre Vigário, mas fui descobrindo episódios recentes no mesmo perfil que não poderia deixar de fora, como a morte de 19 pessoas no Complexo do Alemão em 2007”, contou a autora do filme, Theresa Jessouroun.

Para rodar o longa, ela ouviu 33 pessoas em seis meses. O filme ganhou prêmio como melhor documentário no Festival do Rio, mês passado, e está em exibição no Espaço Itaú, em Botafogo; Cine Joia, em Copacabana, e Ponto Cine, em Guadalupe.

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