Rio - Quem passa pela Rua Santa Luzia no Parque Maré, no complexo de mesmo nome, não tem como não ver as marcas de tiros por todos os lados. Fachadas, janelas, portas, aparelhos de ar-condicionado, tudo virou alvo. Nem o Cristo pintado em um muro se salvou das balas. Após dois dias de operações policiais e confrontos que deixaram um morto e três feridos, O DIA percorreu nesta quinta-feira as vielas para ouvir os moradores. Quase todos que quiseram contar suas histórias pediram anonimato. O medo toma conta das pessoas em meio ao cenário de guerra.
“Ele estava com um tiro de fuzil nas costas e o rosto deformado. Tenho certeza que meu filho nunca roubou e nunca trouxe droga ou arma para casa, mas eu fiz tudo para controlá-lo. Mudei de escola várias vezes, procurei o Conselho Tutelar. Agora já está morto, não posso fazer mais nada”, lamentou Vera Lúcia Ferreira de Souza, mãe de Felipe Ferreira de Souza, 16 anos, a vítima fatal da guerra que parece não ter fim nem vencedores.
A morte do adolescente aconteceu às 6h de quarta-feira, em frente à imagem da santa protetora dos olhos. Na mesma operação, dois jovens de 17 anos foram feridos a tiros. Na terça-feira, Roberta Cristina Ramos da Silva, 24, foi baleada na boca quando ia buscar a filha na escola. Ela teve a língua decepada e está internada no Hospital Federal de Bonsucesso.
Felipe foi enterrado ontem e a família não quis divulgar o local nem o horário da cerimônia: “Temos medo”.
O dia após os confrontos na comunidade e na vizinha Parque União foi de juntar os cacos. “Desde a madrugada consertamos canos d’água e esgoto que foram furados, ajudamos as pessoas com reparos em eletrodomésticos e veículos atingidos. E juntando as balas”, contou o representante da Associação de Moradores do Parque Maré, Nélson Teixeira, mostrando as mãos cheias de cápsulas de fuzis.
Diretora da ONG Redes de Desenvolvimento da Maré, Eliana Sousa Silva, explica que o silêncio na comunidade já foi maior. “Conscientizamos os moradores sobre seus direitos. É um erro achar que morador de favela não tem direito ou não quer discutir segurança pública. Apostamos na união, pois somente o coletivo pode romper o medo”, acentua ela.
Mulher escapou por pouco
Na parede de uma casa, poucos centímetros acima da cama da moradora, um tiro parou depois de atravessar a janela. “Se estivesse no meu quarto, poderia ter morrido”, contou, aliviada.
A vizinha dela teve prejuízo provocado por policial, que furou os pneus de sua moto com facão. “Fui ao batalhão e um oficial disse que vão me ressarcir”, contou a jovem. Segundo a corporação, é comum se esconder drogas em pneus e o agente procurava os entorpecentes.
Mais casos de auto de resistência
A morte do jovem Felipe Souza foi registrada na 21ª DP (Bonsucesso) como auto de resistência, ou seja, quando a polícia mata em confronto. Os militares apresentaram uma pistola que estaria com ele. A vítima consta como não identificada no registro. A família de Felipe irá hoje à delegacia apresentar os documentos do adolescente.
Em nota, a Polícia Civil informou que realizou perícia no local na morte do rapaz e encaminhou o corpo ao Instituto Médico-Legal. Os moradores da Maré, entretanto, afirmam que a perícia foi feita à tarde, quando o corpo do rapaz já tinha sido removido pela PM para o hospital, onde ele chegou morto. As armas dos militares do Batalhão de Operações Especiais (Bope) foram recolhidas para exame de balística.
Os casos de autos de resistência subiram na cidade do Rio e no estado este ano, de janeiro a julho, em comparação ao mesmo período de 2014. Na capital, a alta foi de 19,9% (de 161 casos para 193), segundo dados do Instituto de Segurança Pública (ISP). Em todo o estado o aumento foi semelhante: 19,2% (344 registros contra 410).
As operações no Complexo da Maré foram desencadeadas pelo Comando de Operações Especiais (COE) para combater o tráfico na região, que está desde o final de junho ocupada pela Polícia Militar. O comando do COE contabilizou a apreensão de um fuzil, seis pistolas, munições de fuzil, 214kg de maconha em tabletes e 1.190 trouxinhas da droga; 15.784 sacolés e 1.773 pinos de cocaína, além de 1kg de pasta base e 15kg da droga pronta para ser embalada. Também foram recolhidos 1kg de crack, além de 234 pedras.