Por felipe.martins

Rio - Eu tinha uma prima com síndrome de Down. Lembro que, naquela época, anos 70, muitas famílias usavam “mongoloide” e palavras afins quando se referiam às suas próprias crianças com Down — e não havia um choque claro nisso. Por causa da priminha, entretanto, o pau comia lá em casa quando a gente falava algo parecido.

A verdade é que a ignorância generalizada ainda permite, aqui e ali, esse tipo de tratamento. Embora gradativa mudança de cultura tenha nos tornado menos afeitos a esses hábitos criminosos, o preconceito ainda é brutal.

Um dos melhores relatos a respeito está em ‘O que é que ele tem’ — que, arrisco dizer, é um livro que ainda vai receber prêmios este ano. A autora, Olivia Byington, conta sua experiência com o primeiro filho, João, que nasceu com síndrome de Apert, rara armadilha genética que provoca má-formação nas mãos e no crânio, além de dificuldades de aprendizado.

Nascido em 1981, hoje o João é um sujeito que trabalha, namora, toca sua vida como deveria e detesta que o vejam como um ser à parte do mundo. Tem toda razão. Mas a trajetória da mãe não foi moleza. Primeiro porque teve que aceitar que o tão sonhado filho perfeito não era... perfeito. E aí entra em cena a sinceridade cortante de Olivia. Já de cara ela assume que não foi nada fácil lidar com uma pessoa “diferente”, mesmo sendo seu filho. Quantas vezes vemos casos parecidos?

Mas é também aí que o amor entra em cena. Correndo atrás de dezenas de cirurgias para tentar aliviar o sofrimento da criança, e vendo a criança crescer num mundo “normal”, Olivia se tocou de que o inimigo maior não estava em casa, mas no preconceito das ruas, dos professores, dos colegas. “O que é que ele tem?” foi a pergunta que ela mais escutou a respeito do João.

Vem daí uma das mensagens do livro para quem passa por problemas semelhantes: se é impossível educar a humanidade, a saída é fortalecer a identidade da criança, deixando-a viver no meio dos confrontos, derrubando obstáculos dia após dia. Olivia recusou o papel de mãe sofredora, de vítima do destino, e tocou com sucesso sua carreira de cantora e compositora. Teve outros três filhos e vive intensamente, sem mimimi nem chororô. Embarcou na linha de que mundo só vai melhorar quando todos melhorarem a si próprios. Longe de ser filosofia barata, trata-se de uma velha verdade.

Por essas e por outras, temos aqui um livro que merece leitura cuidadosa não só pelo estilo leve, eventualmente bem-humorado, mas também pela generosidade.

Nelson Vasconcelos é jornalista

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