Por marlos.mendes
A falta de continuidade nos usos e costumes de uma cidade ou a quebra de rotinas que detêm hábitos consolidados são eventos que penalizam o cidadão e empobrecem o núcleo urbano. Eu, por exemplo, sempre me afligi com a fuga de pontos de referência. Quaisquer que sejam. Porque, confesso, me habita um leque de desolações acumuladas, que vão de um bar de estima desativado ou até a falta de um bolinho de bacalhau, que sempre se fez indispensável às papilas durante anos a fio. Mas essas aflições quase confessionais são desprezíveis ante os horrores que corroem a alma da cidade, como a quebra do gabarito — que infelicitou toda a orla carioca. Ou o descuido macabro dos governantes imbecilizados que não cuidaram das águas da Baía de Guanabara e das lagoas.
Há anos (décadas, para ser preciso), denuncio publicamente o olhar vesgo dos prefeitos que penalizam a Avenida Atlântica com o chamado ‘Réveillon Mega’, uma nesga de areia e asfalto sem infraestrutura de transporte, banheiros, ordenação urbana.
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Enquanto isso... abandona-se olimpicamente o interior da Baía entre as orlas de duas cidades — com a perfeição da Ponte para uma cascata ideal de fogos. Também se despreza o espelho d’água da Lagoa Rodrigo de Freitas. Ambos, decerto, dotados de muitíssimos mais conforto e facilidades.
O que me interessa aqui é mugir um ai nostálgico de saudade pela perda do Réveillon da Atlântica, quando as areias — despidas dos horrendos mafuás de hoje — abrigavam apenas centenas de milhares de velas, luzezinhas tênues e delicadas que saudavam o Ano Novo e embalavam a doçura da fé. Fé na divindade, fé no ardor da esperança, fé no silêncio, apenas quebrado, aqui ou acolá, por discretas queimas de fogos. Aos milhares de velas somavam-se flores brancas, uma profusão de palmas-de-Santa-Rita e de rosas ofertadas a Iemanjá. Uma divindade elástica e democrática para abrigar, em síntese ecumênica, o desejo de felicidade.
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Quando me mudei para a Urca, debruçado sobre a prainha, pude experimentar a volta do ponto de referência que era a Atlântica na noite de 31. Voltara a festa da fé e do silêncio, alimentados pelos cânticos em devoção ao bem e à fraternidade da paz. Sem fogos excessivos, sem gente excessiva, sem bebidas, roubos e desconforto excessivos. Voltaram à Urca os trajes brancos, os cânticos ecumênicos, os atabaques ancestrais. E, sobretudo, o bruxuleio insuperável das velas. Além dos barquinhos brancos de Iemanjá em busca das águas da Enseada de Botafogo.
A beleza da discrição e do quase silêncio torna as noites pré-Réveillon, na menor praia da Baía, um ato de fraternidade, embora discreto, quase restrito. Mas fixador de um ponto de referência que se perdeu por nada. Senão para alimentar a grandiloquência delirante de administradores bregas e demagogos.
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Ricardo Cravo Albin é presidente do Instituto Cultural Cravo Albin