Por karilayn.areias

Rio - Rosa tem pouco mais de 90 anos. Está doente. Há algum tempo, os médicos disseram que pouca coisa havia para se fazer. Deixou o hospital e foi viver os últimos dias em casa. Rosa não tem medo da morte. Gosta das rezas. Gosta de conversar com Deus e imaginar como será encontrar tantas pessoas que já se foram. Seus pais. Seu único filho homem. Seu amor.

Rosa é viúva. Tem algumas filhas e muitos netos. Têm parentes. Têm amigos. Domingo passado, muitos deles estavam em sua casa. Rosa estava bem. Conversava. Reparava nas conversas. Imaginava...

As crianças brincavam com aparelhos tecnológicos. Os homens e as mulheres bebiam e falavam sobre coisas cotidianas. Vez ou outra, um comentário sobre política, sobre algum filme em cartaz, sobre um médico bom que havia prescrito um tal remédio. A conversa ia fluindo.

Começou um jogo de futebol. Ligaram a televisão. Rosa lembrou do quanto seu marido gostava de futebol. Os tempos são outros. Ela sabia os nomes dos jogadores. Não sabe mais.

Aos poucos, eles foram indo embora. E Rosa foi ficando sozinha. Ela não se importa. Gosta de ficar com os seus pensamentos. Não tem medo deles. Lembrou-se de que havia deixado tudo preparado para a sua herança. Não queria saber de brigas. Conhecia várias famílias que entraram em guerra no momento da partilha. O marido havia deixado muita coisa. Boa parte, ela já havia dividido. O restante já estava acertado.

Mas Rosa pensava em outra herança. Que mundo ela gostaria de deixar para os seus. Seu marido era um homem rigoroso com a ética. Não tolerava que ninguém negligenciasse as atitudes de honestidade. Presenciou, tantas vezes, o marido preocupado com o outro com quem estava fazendo um negócio. Queria que as duas partes ficassem satisfeitas. Não gostava de ver alguém vendendo alguma propriedade por desespero. Pagava o preço justo. Tratava os funcionários com respeito e os valorizava.

Choraram juntos a morte do filho homem. Um acidente de carro. E a vulnerabilidade da vida se mostrou. Um jovem lindo, lembra Rosa. Como ele seria hoje? Prossegue em seus pensamentos. Vê os netos e se preocupa com eles. Gostaria de deixar como herança laços que não se rompem, de respeito, de afetos, de solidariedade. Olha para o país em que vive, país que os seus pais escolheram quando vieram de muito longe, e sonha que os ódios, os malfeitos, as mesquinharias se convertam em um agir coletivo.

Não compreende como a política sobrevive sem sonhos. Fica prestando atenção aos partidos e aos políticos e vê tão pouca diferença. No discurso e nas atitudes. Preocupa-se com o que dizem os jornais. Deixou de acreditar em muitas informações. Pena. A verdade é uma herança que gostaria de deixar para os que ficam.

Rosa lamenta os namoros tão sem solidez de seus netos. Não é radical em nada. Mas pensa na beleza do cultivo, do tempo da espera, da conquista que se dá aos poucos. As pressas a incomodam. Tudo virou descartável.

Rosa não gosta das comidas prontas. Gosta do cozimento. Da conversa na cozinha. Dos preparos e da partilha. E todos juntos e cada um sendo quem é.

Compreende os tempos que mudam, compreende as novas descobertas, mas não compreende a ausência de amor. Gosta das canções antigas porque cada uma delas tem uma história. Gosta das paisagens. Tem saído pouco por causa da saúde precária, mas tem viajado muito porque tem memória. E porque gosta de lembrar do que viveu.
As filhas mudaram o corpo com cirurgias. Ela não se incomoda. Só não gosta de exageros. Cada um é o que é. E o que o tempo nos dá não nos deve causar desespero. Ela está sempre arrumada. E as rugas parecem desenhar nela um traçado encantado.

Canta ela algumas orações antes de dormir. Conversa com Deus e pede que a herança do caráter fale mais alto aos seus do que o dinheiro que eles herdarão. Deu a educação que pôde, os exemplos que conseguiu; agora, era com eles.

Rosa ainda há de florir algum tempo por aqui. Depois estará plantada em outro jardim, é essa a sua fé. Essa noite ela há de cantar uma canção que seu marido tanto gostava. “Você é isso uma beleza imensa, toda recompensa de um amor sem fim.”

Na opinião de Rosa, se todo mundo olhasse o espelho da própria alma e conhecesse a própria beleza... ah, que herança receberiam!

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