Resgate de 500 imigrantes no Mediterrâneo - Divulgação / MSF
Resgate de 500 imigrantes no MediterrâneoDivulgação / MSF
Por Julia Bartsch

Rio - A euforia com a Copa do Mundo vem escondendo uma enorme demonstração de falta de memória histórica e ingratidão por parte dos países europeus. Os habitantes do Velho Mundo parecem ter-se esquecido de que, em um passado não tão distante, seus conterrâneos lançaram-se ao mar para fugir de guerras, fome, perseguições ou simplesmente buscar uma vida melhor em algum lugar que estivesse disposto a acolhê-los. Agora, negam esta mesma possibilidade a outros, entre eles pessoas de países que foram colônias de países da Europa. Nesta mesma Copa, vemos o grande número de imigrantes entre os jogadores das maiores equipes europeias.

O exemplo mais gritante desta amnésia é o tratamento dado aos imigrantes que se arriscam no Mediterrâneo a partir da costa da Líbia. Com o país em uma situação caótica em meio a uma guerra civil, milhares de pessoas vindas de países da África e Ásia têm se lançado ao mar em precários botes para tentar chegar à Europa a partir do litoral líbio. A postura da Europa é de tentar se livrar do problema: a União Europeia apoia operações de resgate pela Guarda Costeira da Líbia, parte de uma estratégia de "contenção" de potenciais refugiados no próprio território do pais.

Os relatos dos que passam pelo inferno que hoje é a Líbia mostram que ali não é de modo algum um lugar seguro para imigrantes ou refugiados. "O que testemunhei na Líbia foi a encarnação da crueldade humana em sua forma mais extrema", relatou Joanne Liu, presidente Internacional de Médicos Sem Fronteiras (MSF). As pessoas estão expostas a níveis inaceitáveis de violência e exploração: sequestros, trabalhos forçados, violência sexual e prostituição forçada.

Os resgatados no mar são levados a centros de detenção onde são submetidos a maus tratos físicos e psicológicos. Elas permanecem presas sem justificativa, acusação formal ou direito a um processo legal.

No que diferem estes imigrantes dos antepassados de muitos de nós, que saíram de Portugal, Itália, Espanha, Alemanha e de tantos outros lugares? O contraste principal talvez seja a disposição em acolhê-los. Enquanto os europeus eram geralmente bem-vindos, hoje a Europa rechaça imigrantes.

Para reagir à omissão europeia, MSF e outras organizações têm efetuado resgates no Mediterrâneo. Desde 2015, mais de 77 mil pessoas foram resgatadas por embarcações de MSF ou transferidas a elas após o salvamento. Em meados de junho, o governo da Itália violou leis internacionais e negou permissão para que o navio Aquarius, operado por MSF e SOS Mediterranée e que levava 630 resgatados, seguisse para o porto seguro mais próximo.

Algumas semanas depois, o Aquarius voltou a ter negada autorização para uma parada de reabastecimento em Malta. Os entraves têm tido consequências: na ausência do Aquarius e de outras embarcações, os mortos por afogamento perto da costa líbia foram 330 nos últimos dez dias de junho. Antes, a ONU já havia divulgado o balanço alarmante de mais de mil mortes desde o início do ano.

É um problema para o qual, sem dúvida, não há saída simples. A dificuldade em estabelecer uma política migratória na UE tem ameaçado sua coesão. Líderes europeus fecharam mês passado um acordo preliminar que prevê o estabelecimento de "centros de triagem" de imigrantes fora da Europa e o aumento do financiamento a governos de fora do bloco para que eles sejam "contidos".

Voltando à Copa, é inevitável perceber a ironia de uma Europa que valoriza a diversidade e a beleza do futebol jogado por pessoas de todas as origens em suas equipes nacionais. Mas, aparentemente, a valorização desta beleza não passa das quatro linhas do gramado, e parece não haver mais vagas para entrar nestes times.

Julia Bartsch é presidente do Conselho de MSF-Brasil e Paulo Braga Coordenador de Imprensa MSF-Brasil

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