Ricardo Cravo Albin - reprodução
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Por Ricardo Cravo Albin Presidente do Instituto Cravo Albin

Em esquálido espaço de uma semana saem de cena no Brasil duas vozes de essência, Tito Madi e Ângela Maria. Neste mesmo tempo emudece na França um ícone mundial, o também ultrarromântico Charles Aznavour. Insisto na qualificação "ultrarromântico" porque não só Tito quanto ngela faziam saltar seus corações pelas gargantas da paixão ou da ardência do amor.

De fato, minha intimidade com a música sempre conduziu a uma conclusão estética (e mesmo acadêmica) imutável, a necessidade de os povos na América Latina, e até em boa parte do mundo ocidental, privilegiarem o chamado canto "derramado", sentimental, ou ainda de fossa, de dor de cotovelo, isso para voltar aos anos 1950 dos sambas-canções.

No caso específico de Aznavour, ele foi o cantor da maladie d'amour, tal como Piaf, Yves Montand e Jacques Brel, ou Juliette Grécco, esta, não sem razão, a musa do existencialismo sombrio do pós-guerra. Que, por sinal, deitaria sólidas influências ao início do há pouco citado samba-canção, a partir de poetas como Vinicius de Moraes, Antonio Maria, ou até mesmo compositores já de nomeada, como Ary Barroso e Dorival Caymmi.

O desaparecimento de Tito Madi e Ângela Maria, sobretudo ela, me abate em especial. O canto de ambos conduziria o menino de 13 anos no Internato do Colégio Pedro II, o do velho casarão de São Cristóvão, à sua primeira epifania musical.

Ali, na solidão da clausura, o radinho minúsculo, escondido embaixo do travesseiro, me revelaria as vozes de Ângela Maria, a já Rainha do Rádio e sua estrela máxima, e do também iniciante Tito Madi, um raro cantor a apenas interpretar suas próprias músicas. Tito inundaria meu travesseiro de lágrimas com o sucesso de 'Chove lá fora': "A noite está tão fria/ Chove lá fora / E esta saudade enjoada/ Não vai embora."

Ângela potencializava minha saudade da família com os dilaceramentos de 'Fósforo Queimado': "Vives na rua jogado/ És um fósforo queimado / Atirado no chão", 'Vida de Bailarina', 'Nem eu', e dezenas de outras fortíssimas desventuras em forma de arrastados sambas-canções. Pouco importava se de qualidade duvidosa, alguns. Ou até inferiores, emparedados em bizarra cafonice kitch, uns poucos outros.

Dez anos depois, ao assumir o Museu da Imagem e do Som, fiz-me amigo dos ídolos da pré-adolescência. Em ambos colheria a surpresa de testemunhar sentimentos até então inimagináveis em dois mitos que se me apresentavam como gigantes apenas uma década antes: a simplicidade, o bom humor, o espírito da amizade.

Uma simpatia mútua nos enlaçou, estendendo liames que só agora vejo como se mantiveram sólidos, penetrantes, canônicos. E nos alimentariam pelos cinquenta anos seguintes. Que cessariam numa mesma semana. Esta que passou.

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