Rio - Noite de 08 de dezembro, sábado, Rio de Janeiro, menos de uma semana após o Dia Nacional do Samba. Havia algo incomum no ar. Primeiro por certo frio - nada que proporcionasse bater de queixo em escala industrial -, mas alguns casacos até saracoteavam por aí. Carioca confunde tempo fechado com inverno parisiense, não tem jeito. Mas, além disso, ocorria algo preocupante para uma metrópole de identidade forjada em misturas e batuques: não havia nenhum ensaio de escola de samba grande agendado para a data. De-zem-bro, repito.
Bem, há uma crise de representatividade e econômica sem precedentes no carnaval. Os desfiles, que existem desde 1932, sempre souberam negociar a existência, seja por boa relação com os palácios governamentais década a década, seja porque acenavam com um bocado de magia para cidadãos negros e pobres jamais abraçados por políticas públicas efetivas. Mas os dois pilares de sustentação desapareceram nos últimos tempos, feito viga da Perimetral.
Depois de cortar R$ 1 milhão de cada agremiação em 2018, a Prefeitura acena com nova tesoura: outros R$ 500 mil a menos. Isto com o pré-carnaval a pleno vapor, e ainda sem pingar parcela qualquer dos recursos. Resultado: a maioria dos presidentes alega que não tem grana para abrir quadras, tampouco entregar fôlego ao trabalho nos barracões. A folia 2019 será em março, mas o espetáculo não se prepara do dia para a noite. Há escolas do Grupo de Acesso que sequer possuem espaço para confeccionar suas alegorias. Nesse ínterim, houve prisão de dirigente, rompimento de patrocínio da Uber (R$ 500 mil para cada escola grande e R$ 2,5 milhões para a estrutura das apresentações na Intendente Magalhães), agremiação acusada de funcionar como máquina de lavar dinheiro da contravenção. Como sobreviver, de fato, a tantos tsunamis sequenciados?
Verdade seja dita: nunca as ligas, agremiações e o governo decodificaram o impacto do investimento público em carnaval. Talvez, sequer saibam a joia rara que manipulam sem lapidar: são R$ 4 bi (dados da Riotur) movimentados, anualmente, na cidade. Nosso delírio de virarmos uma Suécia tropical é tangível nos famosos quatro dias de Momo - há renda extra, amor livre, os índices de violência diminuem. Um festejo-divã que dialoga com a nossa formação e no qual processamos questões para seguirmos ano adentro, momento de Brasil no rumo do desenvolvimento - em suma, um bem público - a despeito de os governantes insistirem em tola cegueira.
Mas não foi esta gestão da Prefeitura quem criou a grave crise da folia, convém afirmar. Ela é parte do caminho movediço que as próprias escolas percorreram desde que não souberam se reinventar, plantadas em estrutura feudal, de pires na mão, e romântica visão para a ilicitude. Todo coletivo que cultua como deus um fora-da-lei - seja ele vivo ou morto - repele apoio empresarial e se banha de estigmas. A hecatombe no modelo, portanto, ostenta muitas camadas. Fechar o ensaio clássico num sábado, por exemplo, é dançar na corda bamba da relação de pertencimento comunitário. Fazer camisa em alusão à contravenção é afugentar o empresário que deseja transparência. Virar a mesa depois de anunciado resultado nas Cinzas expõe que o "negócio" não é lá muito sério.
Ora, fazer festa é arte (e orgulho) que dominamos como nenhum outro povo. E porque somos pretos, brancos, índios - o cruzamento de tudo -, tocamos tambor, saudamos deuses de todos os matizes e orientações. Já notaram que troço metafísico é o giro d'uma bandeira de samba, qual uma espécie de alegoria dos movimentos de translação e rotação da Terra - justamente, para espraiar valores antepassados e conectar nossos próprios astros daqui e os do firmamento? Num ensaio, há os idosos, as crianças, a permissão unânime do sorriso, o evoluir de pés que levanta poeira e mistura almas, corpos, gerações. É educação de qualidade e Brasil em flor. Nossa vergonha, pois, não pode ser festejar, mas quando tentam aniquilar a alegria. Deixem-nos tocar nosso tamborim! E que Iansã traga os ventos fortes da bênção, que é para soprar conhecimento aos homens da caneta sobre o arrepio que a percussão provoca e a ancestralidade mãe de todos os encontros. À festa! Pra tudo não se acabar para sempre na quarta-feira...
Fábio Fabato é jornalista e escritor
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