Gabriel Chalita, colunista do DIA - Divulgação
Gabriel Chalita, colunista do DIADivulgação
Por O Dia
Rio - É noite. Gosto de tomar um chá antes de dormir. Costume antigo de família. Chá de erva doce. Parece que faz bem.
O sono, hoje, será tinhoso, eu sei. É sempre assim, basta uma tristeza aguda e fico eu a dançar pela cama. Viro de um lado, viro de outro e peço ao meu pensamento que não pense em mais nada. Mas ele não obedece. Nem o chá doce, desta noite, conseguirá aplacar essas imagens que perambulam em mim.
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Não fui o primeiro nem serei o último a experimentar o amargor da ingratidão. Uma vez, li, em algum lugar, uma frase que ficou gravada em mim, "Gratidão é um sentimento que não prescreve". Gostei tanto que repeti para muitos amigos. E foi, justamente, de um amigo que veio a tal ingratidão. Um amigo que me parecia perfeito. Erro meu. Amigos também têm o direito sagrado da imperfeição. Mas, imperfeito que sou, não consigo entender o que fez ele.
No dia que antecedeu a sua atitude deselegante, jantamos juntos. E rimos. E falamos sobre o prazer da convivência. Havia música e outros amigos. Estávamos em paz.
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Sei que há pessoas que roubam a nossa paz. Que chegam sorrateiras e desfilam presença. E, presentes, afastam os que verdadeiramente nos amam. Sei que isso acontece. Mas esse meu amigo é um homem maduro, vivido, de uma inteligência que inspira. Teria ele se deixado levar por influências tão toscas? Teria ele se esquecido de medir com a régua do amor o seu caminhar?
Caminhamos tantas vezes juntos. E tantas vezes partilhamos nossos calvários. Ajudamo-nos, mutuamente, a levantar. Vez ou outra, sentávamos em uma beira do tempo e ríamos das nossas estranhices.
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Para mim, é isso a amizade. Um estar desinteressado. Um dividir que multiplica. Um sentimento bom. O oposto da amizade é a inveja, é a intriga, é a traição.
Pois bem, enquanto sinto o cheiro do chá fumegante, balanço a cabeça contrariado. Gostaria de ter a capacidade instantânea de perdoar, mas não tenho. Será uma noite difícil. Serão dias difíceis. Sentirei a sua falta. É o preço que terei de pagar por minha autenticidade. Fingir que o que ele fez foi correto não está em mim.
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Se fizeram sua cabeça contra mim, bastaria um olhar e uma pergunta. E eu responderia. Talvez eu ficasse chateado, mas não a ponto de um encerramento. Há entreatos nas relações, pausas que podem fazer bem. Pontos finais finalizam.
Meu pai me ensinou, desde sempre, a conjugar o verbo escolher. Escolhi beber essa xícara de chá. Escolheu ele oferecer a mim a erva amarga da ingratidão. E não me digam que foi impulso. Não. Eu dei a ele a oportunidade de me dizer que foi tudo um mal entendido. Ele se manteve firme. Orgulhoso de ter se vingado de algo que eu nunca fiz.
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Na janela da casa onde moro, cantam alguns passarinhos. Só quando amanhece. Nas noites indormidas, é esse som que me avisa que o dia me aguarda.
Minha mulher volta amanhã de viagem. Eu viajo pouco. Gosto do meu bairro, da minha praça, dos meus amigos. São poucos. Agora, menos. Mas é assim. Só peço a Deus que um ou outro não me convença de que o melhor é viver sem ninguém. Isso, não. Desistir da humanidade, nunca.
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Hoje mesmo, vou encontrar um velho amigo que veio de Minas só para me ver. Gosta de me presentear com doces e com esperança. Dormindo ou não, amanhã, é um outro dia. 
Gabriel Chalita é professor e escritor