Gabriel Chalita, colunista do DIA - Divulgação
Gabriel Chalita, colunista do DIADivulgação
Por O Dia
Rio - Eu havia acabado de sair da fisioterapia. Angélica pediu que eu contasse tudo, queria me conhecer melhor, queria que eu falasse da dor, do cansaço, da minha história.
Olhei para ela e ensaiei um resumo. Que não fosse ríspido, mas que não se estendesse além do meu desejo de guardar segredos.

Tenho 80 anos, me chamo Vitória. Tenho rugas. Tenho dores. Tenho incômodos. Minha história é um sopro, ora quente, ora suavizante.

Tenho família, naturalmente. Alguns já se foram. Os que permanecem têm os seus cansaços. O tempo foi me dando lições. Já não tenho o vigor de esculpir pessoas. E, quando tinha, não consegui. Meu pai dizia uma frase que demorou anos para encontrar aconchego em mim: "Ninguém muda ninguém". Ou aceitamos as pessoas como elas são, ou mudamos de calçada.

Meus filhos gostam das cobranças. Há uma ânsia por saber quem é o mais amado. Sigo brincando em não me enraizar em perguntas sem importância. Já me cobrei por ausências, já me ausentei de mim mesma querendo fazer parte. A parte que me cabe nem sempre é compreendida. Por isso gosto de música. Porque me conduz a um espaço de paz. No caos, existe paz. No barulho, encontro silêncio em mim.

Angélica, a fisioterapeuta, prosseguia movimentando minhas mãos. Olho para as minhas mãos e já não consigo compreender. Estão tão diferentes. A juventude é uma dança curta. Traz medo, traz emoção, traz promessas. E acaba. Minhas mãos envelhecidas.

Digo o que consigo e agradeço. Saio da clínica e respiro o ar de um dia frio com sol. Um dia bonito. Na calçada, dou meus passos sem pressa. Sempre gostei de caminhar.

Súbito, um atropelamento. Uma queda. Uma escuridão. Abro os olhos e vejo um jovem que me vê com amor. Nada mais belo que o belo sentimento do cuidar. Sinto sua preocupação. Tudo calmo. Chegam os que me levam a um hospital. Ele vai junto. Segura, com sua firme mão, minhas mãos despreocupadas. Deitada, eu o vejo e me vejo. Ele fala dos meus olhos azuis e eu nada digo.

O tombo não trouxe maiores consequências. Meus filhos não demoraram a chegar. São amorosos. Afoitos, mas amorosos. E, como disse, "Ninguém muda ninguém". É o que eu tenho.

Túlio, o jovem que me resgatou do atropelamento, não teve um dia fácil. Dias fáceis são raridade. Quem controla as nuvens? Fiz o convite, e ele, timidamente, aceitou. Quero todos na minha casa. Sou uma mulher de silêncios, mas também de celebrações. Gosto das histórias que leio nos livros, meus companheiros, e das histórias que leio nas pessoas, meus acompanhantes de jornada. E gosto de festa. Carpe diem.

O dia vai se despedindo. Não pensem que eu desejo algo de Túlio que ele não queira me dar. Quero apenas aquele olhar que me olhou com compaixão. E que deixou de lado o que era essencial para me fazer essencial naquele instante. Sou uma mulher que valoriza os instantes. E que valoriza os que moram nos instantes. Moramos juntos naquela rua, naquela queda, naquele reerguer. Por que, então, prosseguirmos agora de mãos separadas? As minhas mãos velhas escondem histórias que não revelei a Angélica. As mãos apressadas de Túlio me aquecem nesse dia frio. Há sol.

Meus filhos exercem a profissão de disputar quem fala mais. Ouço os planos de me levarem a vários médicos. Discordam dessa ou daquela opinião. Já Túlio parece perscrutar minha alma. Almas não envelhecem. Enternecem.

O tempo levou muito de mim, mas me deu de presente a sabedoria. Ou a loucura, não sei. Sei que estou em paz. 
Gabriel Chalita é professor e escritor