Ricardo Cravo Albin - reprodução
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Por O Dia
Rio - Em momentos como estes de desesperança e abandono, até de fuga por que passa a formosa cidade de São Sebastião, creio ser oportuno trazer aos leitores esta crônica em defesa do Rio, um afago minimalista talvez. Lembranças, apenas lembranças da sedução dos lugares não vistos pelos turistas, dos cariocas que nos abraçam, e com os quais convivemos. Amavelmente, quase sempre.

Certa vez, lá pelos anos 60, em domingo plúmbeo, fui almoçar com Vinicius de Moraes no barraco de Cartola ao sopé da Mangueira. Mergulhei em mesa farta, coroada com a mitológica carne assada da Zica, preparada com arte e apuro ao molho madeira. Ao final da amabilíssima degustação, o poeta empertigou-se e quase solene proclamou “estou na Mangueira, ouvindo Cartola, o meu poeta, comendo a melhor iguaria do mundo, bebendo da pinga mais cheirosa, e recebendo a hospitalidade mais doce e sincera. É claro que esta chuva lá fora é puro sol. As estrelas vão brilhar, e vai raiar uma lua cheia daqui a pouco...”.

Vinicius de Moraes acabara de cunhar ali, à boca da noite, na soleira do barracão de Cartola e Zica no Morro da Mangueira, a definição mais eloqüente da magia da cidade de São Sebastião.

Esta declaração em forma de poesia, ou quase, desvela o espírito do Rio, acimentado pela matéria-prima mais vigorosa, os muitos de seus sortilégios. Que brotam torrenciais por todos os poros dos que amamos a cidade. Sim, porque os há de mentira, incapazes de conviver com a essência exalada pela miscigenação, pela mulatice, pela malemolência dos muitos festejos e dos muitos esconderijos, que a recuperam dos malfeitos persistentes e da inadmissível violência.

A mim, me apraz desvelar miudezas e detalhes aparentemente banais, mas singularíssimos para o acolhimento exato do que é a entidade chamada “Espírito Carioca”.

Quem buscar certos detalhes saberá, mais e melhor, sobre a moldura visceral e única da cidade. De onde flui e se enfeitiça. De como ela escorre como mel. Nem vou enumerar aqui muitos dos segredinhos que o Rio preserva a sete chaves, tão múltiplos e diversificados são. De lugares plantados na natureza exuberante da Floresta da Tijuca à lojinhas que vendem objetos surpreendentes. De cachoeiras secretas à templos que abrigam fieis ortodoxos. De bares/botequins de iguarias exóticas à vielas prenhas de histórias seculares. Tudo isso que o turista comum jamais conhecerá.

As surpresas das revelações que o Rio pode esconder traduzem o crucial desvelar que forma e identifica o milagre do ser, do estar, do viver carioca. E impor aos descrentes e desertores a magnitude de sua essência.
As surpresas urdidas pela cidade parecem mesmo convergir. Sintetizadas, insisto sempre, na miscigenação, na descontração, na leveza da alegria do Rio, na absorção do todo. E no vômito de volta. Que é redentor pela originalidade, e majestático pelo fazer e viver. Ainda que hoje posto em descrédito. 

Ricardo Cravo Albin é jornalista e escritor