Certa vez, lá pelos anos 60, em domingo plúmbeo, fui almoçar com Vinicius de Moraes no barraco de Cartola ao sopé da Mangueira. Mergulhei em mesa farta, coroada com a mitológica carne assada da Zica, preparada com arte e apuro ao molho madeira. Ao final da amabilíssima degustação, o poeta empertigou-se e quase solene proclamou “estou na Mangueira, ouvindo Cartola, o meu poeta, comendo a melhor iguaria do mundo, bebendo da pinga mais cheirosa, e recebendo a hospitalidade mais doce e sincera. É claro que esta chuva lá fora é puro sol. As estrelas vão brilhar, e vai raiar uma lua cheia daqui a pouco...”.
Vinicius de Moraes acabara de cunhar ali, à boca da noite, na soleira do barracão de Cartola e Zica no Morro da Mangueira, a definição mais eloqüente da magia da cidade de São Sebastião.
Esta declaração em forma de poesia, ou quase, desvela o espírito do Rio, acimentado pela matéria-prima mais vigorosa, os muitos de seus sortilégios. Que brotam torrenciais por todos os poros dos que amamos a cidade. Sim, porque os há de mentira, incapazes de conviver com a essência exalada pela miscigenação, pela mulatice, pela malemolência dos muitos festejos e dos muitos esconderijos, que a recuperam dos malfeitos persistentes e da inadmissível violência.
A mim, me apraz desvelar miudezas e detalhes aparentemente banais, mas singularíssimos para o acolhimento exato do que é a entidade chamada “Espírito Carioca”.
Quem buscar certos detalhes saberá, mais e melhor, sobre a moldura visceral e única da cidade. De onde flui e se enfeitiça. De como ela escorre como mel. Nem vou enumerar aqui muitos dos segredinhos que o Rio preserva a sete chaves, tão múltiplos e diversificados são. De lugares plantados na natureza exuberante da Floresta da Tijuca à lojinhas que vendem objetos surpreendentes. De cachoeiras secretas à templos que abrigam fieis ortodoxos. De bares/botequins de iguarias exóticas à vielas prenhas de histórias seculares. Tudo isso que o turista comum jamais conhecerá.
As surpresas das revelações que o Rio pode esconder traduzem o crucial desvelar que forma e identifica o milagre do ser, do estar, do viver carioca. E impor aos descrentes e desertores a magnitude de sua essência.
As surpresas urdidas pela cidade parecem mesmo convergir. Sintetizadas, insisto sempre, na miscigenação, na descontração, na leveza da alegria do Rio, na absorção do todo. E no vômito de volta. Que é redentor pela originalidade, e majestático pelo fazer e viver. Ainda que hoje posto em descrédito.
Ricardo Cravo Albin é jornalista e escritor