Water point in Buzi,Mozambique. The epidemiologists from MSF need to indentify the water source potentially infected with cholera in the town in order to understand the epidemic and send water and sanitation teams to help. - MSF/Pablo Garrigos
Water point in Buzi,Mozambique. The epidemiologists from MSF need to indentify the water source potentially infected with cholera in the town in order to understand the epidemic and send water and sanitation teams to help.MSF/Pablo Garrigos
Por O Dia
Rio - O sol escaldante não é suficiente para secar a lama deixada pelas chuvas torrenciais, tudo está molhado, mas falta água potável. Nas vilas sem pavimento, destruídas pelo conflito armado, as casas são habitadas por sombras e lembranças do que já foram. Por questões de segurança cerca de 10 mil pessoas concentram-se em uma área equivalente a seis campos de futebol, menos de 15m² para cada pessoa.

Neste espaço as pessoas vão comer, reorganizar os objetos resgatados, educar os filhos, restabelecer laços, fazer sua higiene pessoal, buscar emprego e formas de renda. Por um período indefinido, pessoas vão viver em densidades que chegam a 60 habitantes por km². Em contextos insalubres, inadequados para a habitação humana, sem rotas e acessos eficientes e longe de fontes de água, enfermidades como a cólera e outras doenças diarreicas se espalham como o fogo em um rastilho de pólvora.

O cenário descrito acima é típico da atuação de Médicos Sem Fronteiras (MSF), que trabalha nas situações mais adversas que se pode imaginar: catástrofes, epidemias, conflitos armados, desastres naturais e outras formas de restrição ao acesso a cuidados fundamentais de saúde. Atuar nestas situações exige assertividade, flexibilidade e resolutividade, pois não há tempo para tentar. Tudo precisa dar certo, cada erro pode significar mais mortes. E é por isso que MSF é, na atualidade, uma das maiores produtoras de tecnologias e métodos de trabalho revolucionários para situações de extrema vulnerabilidade. Um exemplo real é o enfrentamento da cólera, doença infecciosa que afeta mais de 4 milhões de pessoas por ano e que mata quase 150 mil pessoas todos os anos.

Os Centros de Tratamento de Cólera de MSF são hospitais de campanha com funcionamento ordenado e fluido. A organização vai da montagem ao uso eficiente do espaço, com leitos para internação, áreas de hidratação, zonas de desinfecção, tratamento de água e farmácia. MSF atende pessoas com cólera há mais de 30 anos, e um dos episódios mais recentes em que foi necessário aplicar esta experiência ocorreu durante os surtos da doença que se seguiram à passagem do ciclone Idai por Moçambique.

Já existe um enorme volume de informação acumulada e publicada sobre a cólera. Porém, esta doença, prevenível e tratável, já não devia concentrar tanto nossa atenção. O problema é que ela afeta apenas pessoas pobres e em situação de extrema vulnerabilidade. Sendo assim, não é interessante para a indústria farmacêutica e nem preocupa governantes de países economicamente desenvolvidos. A cólera mata, mas apenas pessoas muito pobres.

Já existe até uma vacina aprovada e em uso. Sua eficiência vem sendo comprovada desde 2005 em projetos de MSF e vários estudos já foram publicados. Os exemplos são impactantes: em abril de 2016 MSF vacinou 426.000 pessoas na Zâmbia, conseguindo conter uma epidemia que teria proporções catastróficas se não fosse abordada de forma precoce e preventiva.

O principal objetivo de Médicos Sem Fronteiras é levar assistência e cuidados de saúde a pessoas em grave risco e em clara situação de vulnerabilidade. Produzir conhecimento científico e acadêmico sobre isto é um motivo de orgulho e demonstra compromisso com àqueles que assistimos, mas também um importante lembrete de que, muitas vezes, a indústria farmacêutica e os grandes organismos de pesquisa só estão preocupados com o que pode reverter lucro financeiro.  
Rafael Sacramento infectologista de Médicos Sem Fronteiras