Gabriel Chalita, colunista do DIA - Divulgação
Gabriel Chalita, colunista do DIADivulgação
Por O Dia
Rio - Chegou hoje o convite. Acabei de abrir. O papel, cuidadosamente escolhido, traz nomes e outros dizeres.

Meus olhos olharam como quiseram. Sem obedecer a um roteiro.
Os nomes foram saindo do papel e sentando ao meu lado. Um a um.
As amizades escancaram os mais belos sentimentos. Leves. Profundos.

Meu filho foi crescendo nos enroscos desses enlaces. O físico e o interno. Internaram-se eles na minha casa tantas vezes. Nos inícios, para brincar, para se alimentar do riso dos que ainda têm muito pela frente. Os jovens pouco falam da morte. O que veem é vida. É eternidade. Depois, continuaram a vir para cuidar de roubar sorrisos do Serginho. Ele foi um resistente, um bravo. Enfrentou as cirurgias. Comemorou as curas. Sorriu nas recaídas.

O câncer foi comendo seu corpo jovem. Se eu pudesse, entregaria o meu para deixar que ele prosseguisse. Nos últimos dias, falava pouco. Seus olhos percorriam cada veia da minha dor. Eu sei disso. E, aí, vinha o pouco de palavra : "Mãe, eu estou bem, eu vou ficar bem". E adormecia aquecido na fé.

Eu sei que ele está comigo olhando o convite. Seu nome está em lugar de destaque. Corro novamente os olhos. E choro o choro legítimo da mãe que se vê obrigada a enterrar o seu filho,

Tenho outros dois. Mais velhos. O Serginho era o caçula. Faz só três meses. Ainda não tive forças para arrumar tudo. Arrumei nada. Nem dentro de mim.

Sou forte para os outros, talvez, por uma necessidade de não partilhar tanto a minha dor. Quem gerou fui eu. Quem enterrou também fui eu.

Meu marido chora nos cantos para que eu não perceba. Tenta ser forte. Nem toda força do mundo seria capaz de resolver. Sei que não somos melhores do que ninguém. Tantas famílias se ajoelham diante da mesma dor.

Mas meu filho não estará na formatura. Ele sonhava ser engenheiro.
Quisera eu ter o poder da engenharia do mundo e quisera eu consertar as doenças que maltratam tantas histórias. Não sei se vou à formatura. Eles querem que eu receba flores. Que eu diga algumas palavras. Me chamam de tia.

As flores no meu filho apenas acentuaram sua beleza. Foi embora sorrindo. Foi triste. É lindo ver os amigos cantando na despedida.
Sinto todos eles comigo. Mas não há mais abraços, nem dedos se encontrando na brincadeira de embaralhar os cabelos.

Serginho gostava que eu fingisse procurar alegria em sua cabeça, enquanto ele descansava sua pouca idade em meu colo. Depois, pegava o violão e tocava para mim. Seus dedos iam dizendo, em notas, o significado do nosso cordão. E ele cantava. E me fazia cantar com ele. E, assim, o dia se despedia e íamos dormir sabendo que, no outro dia, estaríamos juntos.

Justa a vida não é. Não vou disfarçar e dizer que está tudo bem.
Mas quem sabe ele tenha sido inspirado por algo maior quando me disse: "Mãe, eu estou bem, eu vou ficar bem".

Nos dias que ainda me restam, não quero viver de lamúrias, mas hoje quero chorar sem pressa. Olhar esse convite quantas vezes quiser. Ficar no esconderijo de mim mesma, visitando os dias em que estavam todos aqui. 
Gabriel Chalita é professor e escritor