Gabriel Chalita, colunista do DIA - Divulgação
Gabriel Chalita, colunista do DIADivulgação
Por O Dia
Rio - Não é fácil. Na minha idade, não é fácil. Fiquei muito tempo usando o tempo para outro fazer. O trabalho exigiu de mim, meus filhos, também, e minha mulher. Não lamento. As páginas vão sendo viradas. E o que se viu, de alguma forma, fica. E o que se fez devia ter sido feito, é o que eu penso.

Cresceram eles. Cumpri o meu paternal destino. Fiei os meus dias costurando futuros, com eles. Com minha mulher.

Amanda nunca reclamou de meu pouco estudo. Quando nos casamos, ela já era formada, já administrava companhias, já liderava.
E eu dirigia, levando pessoas de um lado a outro. Foi assim que nos conhecemos. Em um dia em que o céu inteiro se derramava em água. Para fugir da chuva, ela acenou. Entrou no meu carro, disse o destino e nos olhamos. Eu cedi um lenço para que se secasse. Ela agradeceu. Falamos nada no início, mas nos olhamos. O espelho do carro me revelava os olhos que me acenderiam os dias. E assim nos amamos até hoje.

Quando disse que voltaria a estudar, ela apenas ofereceu o sorriso rotineiro e fez um comentário elogioso. E me beijou com sabor de novidade. O tempo não nos esfriou. Gostamos de nos sentir e nos sentimos dispostos a permanecer.

Não tenho apreço pelas mentiras. Já tivemos que limpar muita história. Já nos estranhamos em nossas diferenças. Mas o tempo foi nos convencendo de que era bobagem deixar a mesa posta e tentar outro lugar. Nos alimentamos até das dores e aqui estamos nós. Inteiros.

No primeiro dia de aula, entendi nada. Sou lento para a escrita, embora seja atento para a escuta. Sou o mais velho da turma. Isso não me incomoda. Chego cedo e me preparo para o novo.

Entra e sai professor. Matérias diferentes vão forçando o meu cérebro a se exercitar. Às vezes, me canso. Meu pensamento viaja a lugares outros que a sala de aula. Às vezes, me boicoto. Digo para mim mesmo que é bobagem tudo aquilo. Às vezes, me elevo e fico em êxtase por aprender o que não imaginava.

Tem gente que diz que o aluno faz a escola. Não sou sabido para dizer o certo, mas gosto das matérias dos professores que gostam da gente.

Amauri é um professor que nos enxergou, desde o início. Quis saber o nosso nome e outras coisas. Sua conversa já era um ensino. Gostei quando disse que o que mais gostava na vida era de estar ali. Com a gente. Falou de umas teorias textuais e nos pediu que escrevêssemos uma carta. Linguagem epistolar. Eu nem sabia o que era. Ele explicou. Escrevi uma carta para Amanda. Ele gostou, sentou comigo e foi sugerindo consertos. Disse que o mais importante eu tinha, os sentimentos. O resto se aprende.

Julia é professora de matemática. Disse que os números são mais fáceis que as pessoas. E riu. Gosto de quem gosta de sorrir. Vou anotando como posso e, no tempo que posso, estudo.

Vou me formar aos 60 anos. Não sei se vou mudar de trabalho. Gosto de dirigir. E de imaginar a vida dos outros. Sem inveja alguma. Só curiosidade e admiração. Quando vejo dois velhinhos de mãos dadas no meu carro, penso em Amanda. Quando vejo dois jovens começando, penso em Amanda. Quando chove, me lembro do primeiro dia com ela. E, quando não chove, me lembro dos outros dias. Com ela. Foi mais ou menos isso que escrevi. Que vivi. Ele quis que eu lesse alto. Corei. Tenho uma certa timidez. Li. Gostei de enfrentar os meus medos. Outro havia lido uma carta de pedido. Outro, de despedida. Quando li a minha, alguns pediram para refazer as próprias. Falar de amor contagia.

Meus filhos brincam comigo. Dizem que fico bobo quando olho para a mãe deles. Pode ser. Ontem, disse a ela sobre o poema de Drummond. "No meio do caminho havia uma pedra". Ela continuou. E falou das flores. E me declamou Cora Coralina. Enquanto falávamos, os nossos dedos brincavam de amar. E, depois, prosseguimos sem as palavras...
Gabriel Chalita é professor e escritor