Gabriel Chalita, colunista do DIA - Divulgação
Gabriel Chalita, colunista do DIADivulgação
Por O Dia
Rio - Desperto o dia e saio para trabalhar. Invariavelmente, no escuro. No ônibus, vou assistindo à chegada do sol. Ou da luminosidade de dias nublados.

Abro a padaria e organizo o que precisa ser organizado, antes das pessoas chegarem.
Conheço muitos pelo nome.

Chico gosta de saber que sei do que ele gosta. Pão na chapa sem miolo com manteiga e café carioca. Enquanto preparo, ele fita o nada. Acho que medita no barulho que vai arrebentando o silêncio.

Em frente à padaria, há Julio, que ali se aloja e aguarda algum gesto. Mora Julio nas ruas. Como tantos outros. Não sou entendido de doenças da cabeça, mas sei que eles, ali, não estão por opção. Julio tem medo de albergues. Diz que as paredes caem e que se despedaçam sobre ele. Além do quê, não sabe se deixam entrar seu cachorro.

Era um dia de entradas e saídas na padaria como qualquer outro. Da chapa quente, ouço uma quentura de sentimentos. Alcides, um senhor que frequenta a padaria, estava exaltado ameaçando Julio, que parecia não entender. Gritava impropérios. "Você é um lixo você atiçou esse cachorro contra mim, vou acabar com você". O resto, não quero repetir. Não em uma manhã de domingo.

Alguém quis saber. Alcides gritou que o cachorro rosnou pra ele. E gritou mais. "Você é um merda, levanta daí, se for homem".

Quando Alcides se aproximou mais de Julio que prosseguia na calçada, o cachorro tomou as dores do indefeso e latiu forte e foi se aproximando de Alcides que recuou. E que entrou na padaria e pediu uma faca para mim. E foi logo avisando: "Eu vou matar esse cachorro, quem ele pensa que é?". Eu, com delicadeza, tentei responder, "Ele não pensa, seu Alcides, ele é um cachorro. Já o senhor pensa, por favor, se acalme". E foi ali que ele disse que eu não passava de um empregado desqualificado.

Nisso, ele percebeu que as pessoas filmavam com seus celulares. Tanta deselegância. Olhei para o seu pulso e um relógio brilhava um ouro que não era barato. Riqueza não lhe faltara na vida. Nem tempo de experiência. Lembrei de um livro que li e que um personagem dizia a outro que envelhecia cheio de ódio: "Que pena que ficastes velho sem ficar sábio".

Foi embora o seu Alcides. A tensão deu lugar a uma música leve que uns sanfoneiros, em busca de algum reconhecimento, tocavam na calçada.

Vi quando Julio se sentou e ficou dançando com a cabeça e sorrindo com os dentes que ainda permaneciam. Sorriso lindo o dele. O cachorro deitado no colo. Dona Lourdes parou e deu a ele um sanduíche. E insistiu que fosse a uma entidade em que ela fazia um trabalho voluntário. Ele riu. E disse nada. Foi dividindo com o cachorro o que comia. E rindo das sanfonas.

Chico comentou comigo sobre os nervosismos. Ele é professor. É observador das gentes. Dona Lourdes teve tempo de brincar com o cachorro que ficou de barriga para baixo, aguardando os afagos.

O ideal era que ninguém morrasse nas ruas. Que cada um tivesse o mínimo para sobreviver com dignidade. Há chagas, entretanto, que não são simples de serem curadas. Só se sabe que não se as cura com gritarias nem com ódio.

Seu Alcides e dona Lourdes têm mais ou menos a mesma idade. E moram no mesmo quarteirão do mundo. Um é famoso pelas irracionalidades; a outra, pela bondade. "Os dois servem de exemplo", dizia Chico. "O que eu não quero e o que eu quero ser na vida".

Limpei as sujeiras que pude e deixei o trabalho para os outros que entram depois de mim. Ainda na saída, olhei para os dois dormindo na fria calçada. Julio e o cachorro. A cena era triste, mas bonita. Parecia que sonhavam. Em paz.
Gabriel Chalita é professor e escritor