Os procuradores não precisavam ser especialistas para saber que as doenças supracitadas não podem ser transmitidas dessa maneira. Em realidade, são justamente medidas como essas – de criminalização da migração – que acabam sendo a raiz de muitas enfermidades. Em MSF, costumamos dizer que as barreiras não impedem as migrações, apenas tornam mais perigosos os percursos. Após a organização ter retomado as operações de busca e salvamento no navio Ocean Viking, no dia 21 de julho, juntamente com a SOS Mediterranee, os relatórios mostram que a maioria dos nossos pacientes a bordo apresentam desidratação, hiper ou hipotermia e queimaduras, causadas pelo sol ou pelo combustível dos barcos em que são transportados. Na Líbia – rota quase obrigatória de milhares de pessoas que vão rumo à Europa – diversos migrantes morreram em um bombardeio recente a um centro de detenção. MSF já há muito denuncia as péssimas condições desses locais, nos quais imperam doenças como tuberculose e hepatite viral e toda sorte de situações degradantes, incluindo tortura. À despeito de tais fatos concretos, a União Europeia segue mandando milhares de pessoas de volta ao país do norte da África.
Nessa odisseia, não são apenas doenças infecciosas que afetam a saúde de imigrantes refugiados. Após serem resgatadas, é comum que as pessoas relatem desconfortos de origem somática, ou seja, que têm relação com os traumas sofridos durante o percurso e em seus países de origem. São experiências cujos efeitos irão deixar marcas por toda a vida, interferindo não só na sua saúde, mas nas probabilidades de integração, reinserção laboral, e seguimento educacional. Assim, dos que sobrevivem a esse périplo, 9 em cada 10 já adoeceram. Um quarto de todos que atravessam hoje o Mar Mediterrâneo são crianças – em sua maioria, desacompanhadas. Como diz um de nossos médicos atuantes na embarcação, muitas delas não sabem o que é viver em segurança. Em contraste, um então-representante do governo italiano, ao referir-se aos imigrantes transportados pelo Open Arms, outra embarcação de resgate, chegou a alegar que esses eram ‘falsos doentes e falsos menores’. Negar seu sofrimento era peça chave para deixá-los à deriva.
Desde então, houve ao menos alguns sinais positivos dos países europeus de maior abertura para o desembarque de resgatados no Mediterrâneo. Pela primeira vez em muitos meses, imigrantes, retirados do mar pelo Ocean Viking, puderam desembarcar na Itália. Esperamos que isso signifique um avanço concreto para o estabelecimento de uma política consistente de acolhimento de refugiados na Europa.