Gabriel Chalita, colunista do DIA - Divulgação
Gabriel Chalita, colunista do DIADivulgação
Por O Dia
Rio - Pensei em falar para minha mãe, mas tive vergonha. Ela também tem dentes ruins. Meu pai nunca está em casa. E, dele, tenho medo. Para ele, falo nada.

Os amigos riram de mim. Os da minha classe. Senti a dor e guardei o choro para quando estivesse a sós comigo. E, no quarto, chorei arrependido da vida. Depois, tomei um café requentado para esquecer. Essas coisas não se esquecem.

Foi o Ricardo que começou. Faz algum tempo. E é sempre quando chego. Ele levanta e me oferece bala. Para aliviar o cheiro. E os outros riem. E ele pede que eu abra a boca. Para um experimento necrológico. É o que ele diz. Diz que tem muito bicho morto dentro de mim. Não abro a boca. Apenas me sento e desejo o fim. E os outros fazem nada. Riem apenas. Um ou outro murmura um "tadinho". E é só. E voltam ao dia.

Prestar atenção à aula? Como? Se tudo dói? Minha alma dói. Quando penso em pedir à minha mãe para ir ao dentista, desisto. Dinheiro é fruto que não brota em casa. É tudo tão contado. Pesquisei lugares em que dentistas atendem quem precisa. Tenho vergonha de ir. Se é verdade que meu cheiro é tão ruim, o que pensarão de mim? Mais risos? Mais ditos desrespeitosos?

Pensei em mudar de escola, queria era mudar de mundo. Queria um mundo onde o riso fosse permitido, independentemente dos nossos defeitos. Queria um mundo em que ninguém precisasse passar pelo que eu passo. Queria um mundo em que uma mãe pudesse amar o seu homem sem medo. Meu pai é violento. Sempre diz que vai mudar. E permanece o mesmo. E minha mãe sussurra com os seus santos de devoção que não aguenta mais. Por que ela não muda? Talvez porque, como eu, também tenha vergonha.

O cheiro de tristeza ronda minha casa sem descansos. É raro ver o sorriso de minha mãe. Seus carinhos me visitam, quando ela se lembra. Anda esquecida a mulher que tanto amo. Anda sofrida, certamente. E espera de mim um amanhã com mais sol. Pobre mãe, mal sabe ela a vergonha que sou.

Futuro é um lugar que não cabe na minha prateleira. Há muitos entulhos de ontens, muitas humilhações que me lembram que sou nada. Sou apenas um cheiro ruim. Em algumas noites, converso com o tempo pedindo que não seja tão vagaroso. Quero cumprir o que tenho que cumprir e ir embora. Minha mãe acredita em Céu. Eu também acredito. Não poucas vezes pensei em antecipar a partida. Em dar fim ao cheiro ruim que sou. Mas e minha mãe? Quem cuidará de suas feridas? Se não fosse por ela, eu deixaria alguns dizeres e iria embora. Se não fosse por ela, eu não seria.

Há um professor que me enxerga. Ele também me ensina a prosseguir. Amauri nos ensina uma matemática da vida. Os números também têm sentimentos. Uma agressão com outras agressões, mesmo que simbólicas, somam perigos que destroem vidas. Um sorriso somado com um cuidado somado de atenção devolve alguma esperança . Amauri diz que eu deveria ser arquiteto. Isso eu disse para minha mãe que ficou orgulhosa. E que enxugou, com o dia, as lágrimas que a noite anterior depositou.

Na semana passada, Amauri me falou de um dentista que ele foi, primo seu. E sorriu mostrando os seus dentes. Eu fechei ainda mais com força a minha boca. Não queria decepcionar o único que me via. Deu-me ele um olhar e uma luz. Falou sem falar que compreendia o meu sofrimento. N o mesmo dia, contou ele uma história de um aluno que deu fim à vida porque não aguentava mais as pequenas ranhuras que lhe faziam na alma. Falou sobre a palavra compaixão. Falou sobre o riso errado de quem ri da dor do outro. Jamais alguém pode ser feliz sobre a miséria de outro alguém. Nada disse sobre mim. Mas percebi que o silêncio daqueles alguns poderia fazer brotar um pouco de respeito. Ricardo, nesse dia, nada me disse. Nem bala ofereceu. Apenas me olhou. Talvez seja ele tão triste quanto eu. Talvez faça o que faz com a ignorância de se imaginar feliz.

Amauri é um professor feliz. Sinto isso quando ele olha e inicia a sua dança de números e de sentimentos. Vou com ele ao dentista. Vou, sim. E, depois, voltarei a sorrir. E, um dia, serei um arquiteto cuidador de espaços e de gentes. Um dia, minha mãe voltará a sorrir. Não. Não vou desistir da vida. É aqui, onde moram as minhas dores e a minha vergonha, que eu devo ficar. O inverno já me avisou que está chegando ao fim.
Gabriel Chalita é professor e escritor