Rio - Tenho saudade do mar. Tenho saudade da primeira impressão que tive diante do mar.
Nasci em um interior e demorei a chegar aqui. Vim descalço de sonhos. Vim fugido de um amor. Ela era o que eu tinha, quando nem vida tinha para contar história. Então, eu inventava.
A dor, eu não inventei. A primeira paixão foi cruel. Ela tinha experiência; eu, não. Ela ria da minha velocidade; eu, não. Temia que acabasse. Acabou. Um dia, ela apareceu com outro. Tão menino quanto eu. E disse nada. Não precisava. E foi assim que, pela primeira vez, chorei de amor. Chorei um choro tão doído e tão constante que aprendi a mentir tristezas. E, nelas, ia acreditando. Não queria que soubessem. Eu fui trocado e isso era fato. Passava pela rua dela e imaginava o que faziam. E rascunhava na minha mente as minhas imperfeições. Ele devia ser melhor, se não, ela estaria comigo.
Foi assim que parti e vim para uma cidade em que ninguém me conhecia. E continuei inventando histórias. E, inventando histórias, fui sendo amado. Falei de uma viuvez precoce. “Minha mulher morreu em um dia de junho. Fazia frio e ela não acordou abraçada a uma foto minha. Uma doença súbita me trouxe o luto. E, por isso, parti.” Quando perguntavam de documentos de casamento, eu explicava que havia me despedido de tudo que lembrava aquele dia. Mudei um pouco a história para nos dizer noivos. Assim, não teria que mostrar documento. Acreditei tanto que não fui trocado que acalmei a saudade.
Encontrei outra mulher. E, novamente, me ajoelhei. Repeti alguns erros, talvez. O medo de um novo abandono me fez um criador de vitórias. Mentia para ser amado. Apenas isso. Um dia, ela soube que eu era diferente do que eu dissera. Coisa pouca. E se foi. E se foi dizendo que eu era melhor do que as minhas invencionices. Chorei o perdão. Ela disse nada. Pedi que eu coubesse em um abraço seu. Apenas isso. E ela disse que mentiras a perturbavam. Me lembrei de minha avó que, um dia, se chateou comigo. Contei uma mentira boba de escola. De que havia ganhado um prêmio de poesia. E ela soube que nem concurso houvera. E não me abraçou.
Depois da nova dor, fui ver o mar. Um dia, me contaram que é tudo como as águas que vêm e que vão. Que as pegadas vão se despedindo uma a uma. As belas e as estranhas. Então, é preciso esperar. Nem sei bem se me contaram isso. Não quero mais fantasiar. No carnaval da minha pequena cidade, certa vez, me fantasiei de feliz. Não. Aqui estou eu mentindo. Nem sei se existe essa fantasia. Decerto, não . Se existisse, ia rezar para que fosse carnaval todo dia. Mas não é.
Conheci uma outra mulher. E, com essa, entendi a paz. Era bom ir à praia. Era bom ver o quanto ela brincava com as espumas. E o quanto me beijava sem perguntas. Dos nossos sentimentos, vieram nossos filhos. Vez ou outra, me pegava dizendo que vivi o que não vivi.
Não sou um mentiroso. Sei disso. Gosto de florescer nas histórias. Apenas isso. Minha mulher percebia e dizia nada. Apenas me amava. Depois de tantos banhos de mar, ela se foi. De uma dessas doenças que ainda não conseguimos vencer. E eu fiquei. Choramos juntos entre túmulos e vidas. Havia os nossos filhos para dar alicerces. E alguma pouca juventude.
Depois dela, não mais fui ao mar. Era como se aquele lugar fosse para viver junto. Seus pulos cheios de gracejos. Seu mexer de braços. Seu correr sorrindo de volta para a areia, enquanto eu fazia castelos imaginários com as crianças.
As crianças não mais são crianças. Ela não mais virá correndo. E eu já não tenho vocação para construir castelo algum. Sobrou em mim um casebre de tempo. Ruindo a cada dia.
Estou em um hospital, me recuperando de um corte. Abriram. Tiraram alguma coisa. E fecharam. Dizem que estou bem. Que tudo deu certo. Não sei se é verdade ou não. A verdade é que tenho saudade do mar. Algumas pessoas dizem que, na morte, alguém que amamos vem nos buscar e nos conduzir para que tenhamos segurança. Fico imaginando minha mulher saindo das águas do mar e me estendendo as mãos e me chamando para um banho eterno de amor.
Se eu quiser me lembr ar das outras que partiram, consigo, mas tenho que me esforçar muito. Talvez me lembre mais da dor que senti quando elas partiram. É assim que é. Um dia, varremos as lembranças que não fazem falta e nos ocupamos de organizar os espaços que, na alma, se chamam gratidão. Nas mentiras, encontrei uma mulher de verdade. E filhos de verdade. E uma vida de verdade. E senti que o amor só é amor quando não exige perfeições.
Nas lembranças de gratidão, vejo o sorriso de minha mulher de verdade admirando as minhas histórias e gostando de estar ali, comigo. Não sei se dei a ela tudo o que eu deveria ter dado. Não sei se agradeci o necessário. Éramos, um para o outro, o bastante. E foi assim que pegamos ondas, que ralamos no raso, algumas vezes, que enfrentamos profundidades. Juntos.
Se eu conseguir sair daqui, quero ver o mar mais uma vez. E, se possível, entrar na água e chorar o quanto eu aguentar. E, depois, estar pronto para o que tiver que acontecer. Não. Não estou triste. Estou apenas nadando em memórias verdadeiras. E sorrindo acompanhado.
Nasci em um interior e demorei a chegar aqui. Vim descalço de sonhos. Vim fugido de um amor. Ela era o que eu tinha, quando nem vida tinha para contar história. Então, eu inventava.
A dor, eu não inventei. A primeira paixão foi cruel. Ela tinha experiência; eu, não. Ela ria da minha velocidade; eu, não. Temia que acabasse. Acabou. Um dia, ela apareceu com outro. Tão menino quanto eu. E disse nada. Não precisava. E foi assim que, pela primeira vez, chorei de amor. Chorei um choro tão doído e tão constante que aprendi a mentir tristezas. E, nelas, ia acreditando. Não queria que soubessem. Eu fui trocado e isso era fato. Passava pela rua dela e imaginava o que faziam. E rascunhava na minha mente as minhas imperfeições. Ele devia ser melhor, se não, ela estaria comigo.
Foi assim que parti e vim para uma cidade em que ninguém me conhecia. E continuei inventando histórias. E, inventando histórias, fui sendo amado. Falei de uma viuvez precoce. “Minha mulher morreu em um dia de junho. Fazia frio e ela não acordou abraçada a uma foto minha. Uma doença súbita me trouxe o luto. E, por isso, parti.” Quando perguntavam de documentos de casamento, eu explicava que havia me despedido de tudo que lembrava aquele dia. Mudei um pouco a história para nos dizer noivos. Assim, não teria que mostrar documento. Acreditei tanto que não fui trocado que acalmei a saudade.
Encontrei outra mulher. E, novamente, me ajoelhei. Repeti alguns erros, talvez. O medo de um novo abandono me fez um criador de vitórias. Mentia para ser amado. Apenas isso. Um dia, ela soube que eu era diferente do que eu dissera. Coisa pouca. E se foi. E se foi dizendo que eu era melhor do que as minhas invencionices. Chorei o perdão. Ela disse nada. Pedi que eu coubesse em um abraço seu. Apenas isso. E ela disse que mentiras a perturbavam. Me lembrei de minha avó que, um dia, se chateou comigo. Contei uma mentira boba de escola. De que havia ganhado um prêmio de poesia. E ela soube que nem concurso houvera. E não me abraçou.
Depois da nova dor, fui ver o mar. Um dia, me contaram que é tudo como as águas que vêm e que vão. Que as pegadas vão se despedindo uma a uma. As belas e as estranhas. Então, é preciso esperar. Nem sei bem se me contaram isso. Não quero mais fantasiar. No carnaval da minha pequena cidade, certa vez, me fantasiei de feliz. Não. Aqui estou eu mentindo. Nem sei se existe essa fantasia. Decerto, não . Se existisse, ia rezar para que fosse carnaval todo dia. Mas não é.
Conheci uma outra mulher. E, com essa, entendi a paz. Era bom ir à praia. Era bom ver o quanto ela brincava com as espumas. E o quanto me beijava sem perguntas. Dos nossos sentimentos, vieram nossos filhos. Vez ou outra, me pegava dizendo que vivi o que não vivi.
Não sou um mentiroso. Sei disso. Gosto de florescer nas histórias. Apenas isso. Minha mulher percebia e dizia nada. Apenas me amava. Depois de tantos banhos de mar, ela se foi. De uma dessas doenças que ainda não conseguimos vencer. E eu fiquei. Choramos juntos entre túmulos e vidas. Havia os nossos filhos para dar alicerces. E alguma pouca juventude.
Depois dela, não mais fui ao mar. Era como se aquele lugar fosse para viver junto. Seus pulos cheios de gracejos. Seu mexer de braços. Seu correr sorrindo de volta para a areia, enquanto eu fazia castelos imaginários com as crianças.
As crianças não mais são crianças. Ela não mais virá correndo. E eu já não tenho vocação para construir castelo algum. Sobrou em mim um casebre de tempo. Ruindo a cada dia.
Estou em um hospital, me recuperando de um corte. Abriram. Tiraram alguma coisa. E fecharam. Dizem que estou bem. Que tudo deu certo. Não sei se é verdade ou não. A verdade é que tenho saudade do mar. Algumas pessoas dizem que, na morte, alguém que amamos vem nos buscar e nos conduzir para que tenhamos segurança. Fico imaginando minha mulher saindo das águas do mar e me estendendo as mãos e me chamando para um banho eterno de amor.
Se eu quiser me lembr ar das outras que partiram, consigo, mas tenho que me esforçar muito. Talvez me lembre mais da dor que senti quando elas partiram. É assim que é. Um dia, varremos as lembranças que não fazem falta e nos ocupamos de organizar os espaços que, na alma, se chamam gratidão. Nas mentiras, encontrei uma mulher de verdade. E filhos de verdade. E uma vida de verdade. E senti que o amor só é amor quando não exige perfeições.
Nas lembranças de gratidão, vejo o sorriso de minha mulher de verdade admirando as minhas histórias e gostando de estar ali, comigo. Não sei se dei a ela tudo o que eu deveria ter dado. Não sei se agradeci o necessário. Éramos, um para o outro, o bastante. E foi assim que pegamos ondas, que ralamos no raso, algumas vezes, que enfrentamos profundidades. Juntos.
Se eu conseguir sair daqui, quero ver o mar mais uma vez. E, se possível, entrar na água e chorar o quanto eu aguentar. E, depois, estar pronto para o que tiver que acontecer. Não. Não estou triste. Estou apenas nadando em memórias verdadeiras. E sorrindo acompanhado.
Gabriel Chalita é professor e escritor
Comentários