Diana Vasconcellos - Divulgação
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Por O Dia

A identidade árabe encontra a sua maior influência bem enraizada numa das mais longas dinastias na história, no Império Turco Otomano. Esses seiscentos anos moldaram a política, religião, e forma de viva árabe. Contudo, a derrota na Primeira Guerra Mundial marcou o fim do Império. Vários historiadores consideram esse um dos momentos chave na história árabe: o momento em que alguém precipitadamente pega num lápis e numa régua e divide o Império em colônias para os aliados. Hoje, três gerações depois, a amarga disputa para retificar estas fronteiras ainda está no epicentro dos conflitos regionais.

 

As Nações Unidas identificaram em 2016, 13,5 milhões de refugiados somente da Síria - AFP

Entre 1945 e 1970 a Síria viveu a ascensão e queda de vários regimes, foi alvo de golpes de estado e esteve sobre controle militar. A confusão, a desconfiança e o terror dominou esse período. À determinada altura, até foi apontado como ministro da defesa um espião israelita infiltrado — coisas que aprendemos na Netflix. Na origem dessa instabilidade política esteve a criação de uma desvirtuada noção de nacionalismo sírio, 'o árabe sunita', que afastou as minorias do debate político e as radicalizou.

Hafez al-Assad sobe ao poder em 1970 tomando partido do seu destacamento militar. Em 2000, a sua morte assinalou a pacífica passagem de poder para o seu filho, Bashar al-Assad. Esse declara inicialmente que será que um líder diferente, conciliador e moderno, e que se irá legitimizar por meio de eleições. No entanto, e para grande surpresa, rapidamente o regime regressou a um sistema autoritário. Num ambiente regional tenso marcado pela Primavera Árabe, falhas políticas e sociais desencadeiam demonstrações nas quais os manifestantes exigiam o afastamento do presidente. Assad responde com força, mas a repartição dos rebeldes em grupos hostis aumenta incapacidade de controle da situação.

Na tentativa de enfraquecer o poder de Assad, os rebeldes tomaram controlo de algumas regiões e de setores estratégicos para país, nomeadamente o petrolífero. Dividem-se em dois ramos, ainda que a questão seja mais complexa que isso: os que lutam pela sua pátria e que procuram depor o regime de Assad e os jihadistas, que procuram criar uma dar ul-Islam, um novo estado. O projeto desses últimos é ambicioso e radical, estendendo-se para além da Síria e do mundo árabe. Os dois grupos jihadistas mais perigosos na Síria são os Hayat Tahrir Al-Sham - forças ex-Al-Nusra, do grupo Al-Qaeda dedicadas primariamente a atacar o Ocidente e o mais que conhecido ISIS - Estado Islâmico do Iraque e de al-Sham, que tem como principal objetivo estabelecer um califado e implementar a Lei Sharia, enraizada no Islã do século VIII.

A morte do terrorista

Acredito que todos suspiramos de alívio ao acordar com a notícia de que o líder da mais temida organização terrorista estava morto. Realmente a morte de Abu Bakr al-Baghdadi, fundador e líder do autoproclamado Estado Islâmico, é um golpe esmagador para a já enfraquecida organização. Mas verdade seja dita, a morte de Baghdadi deu pouco de alívio aos sobreviventes. O deslocamento, desalojamento, a morte e a destruição continuarão a atrapalhar qualquer um nos próximos anos. A grande questão agora é se a sua morte jogará ou não a favor da Al-Qaeda. As duas organizações partilham ideologias muito semelhantes - tendo em conta que o ISIS é o resultado de um rebranding, do que foi um franchise da Al-Qaeda no Iraque e que em 2014 passou a ser um grupo independente. Esse afastamento foi em larga medida o fruto de um confronto de egos entre os seus líderes, mas essa rivalidade deverá ter-se evaporado com a morte de Baghdadi. O vácuo político proporciona à Al-Qaeda a oportunidade ideal para reunir as forças.

Como consequência da morte de Baghdadi, as dinâmicas políticas podem se alterar ou até diminuir temporariamente. Quer no caso de Bin Laden, quer no caso de Baghdadi, as suas mortes podem ter provocado uma pausa, um momento de lucidez e terror, de compreensão de que ninguém é invulnerável e de que ninguém é invencível. Porém, naquela que é a luta eterna dos jihads, um momento como esse é curto e não passa de uma inconveniência.

A morte de Osama bin Laden não trouxe o fim do terrorismo e a morte de Baghdadi também não o trará. Atenção, o jihadismo não é um fruto de anos de intervenção americana ou o resultado de um choque de civilizações. Desde do momento que o mundo árabe foi dividido em colônias que existem forças que vêem a violência como necessária para erradicar os obstáculos à restauração do governo de Deus na Terra e à defesa da comunidade muçulmana. O jihadismo não é um fenômeno recente, e assim sendo, nem o ISIS é o primeiro nem será o último grupo insurgente a promover uma visão apocalíptica do mundo.

A história de Khalil Hamza

Enquanto que a morte de Baghdadi foi possivelmente um dos eventos mais noticiados dos últimos tempos, há outras caras, outras forças dessa guerra que embora representem milhões de pessoas, não são tão noticiadas. Ninguém quer ler a mesma notícia vezes sem conta. Mas, e se se tratar de um movimento - um evento sem fim? Possivelmente também não. As Nações Unidas identificaram em 2016, 13,5 milhões de refugiados somente da Síria. Eu vou contar a estória de um.

Khalil Hamza, com 15 anos, deixou para trás toda a sua vida em março de 2013. Até esse dia estudou e trabalhou. Viu pessoas morrerem na sua praça preferida. Viu, após atentados, pessoas sem braços, pessoas sem pernas e outras com as caras queimadas. Está grato por sua família estar bem e ter conseguido chegar à Grécia. Hoje Khalil tem 21 anos e viveu os últimos sete entre campos. Passou primeiro por Samos e descreve as condições como 'extremamente más'. Explica que havia ressentimento, ameaças e racismo por todo o lado e entre todas as religiões e raças. Hoje no Campo Eleonas, em Atenas, estuda, mas não terá um diploma. Ainda não tem passaporte nem identificação e por esse motivo não pode sair de Atenas. Quanto ao seu futuro Khalil quer graduar-se e receber um diploma que o comprove e quer trabalhar com qualquer coisa, desde que possa ajudar a sua família. É tímido, mas doce. Durante a entrevista procurou sempre responder rapidamente antes que as lágrimas caíssem, e com alguma ansiedade de acabar, perguntava imediatamente pela próxima pergunta.

Khalil passou pelo inferno e escapou com vida e com família. Na verdade, essa é uma estória de sucesso. Passado sete anos continua no ponto zero, sem nada, angustiado por recomeçar a viver. Sonha em ir para a Holanda e em puder fazer aquilo que gosta, costura.

Por fim, queria reforçar que apesar de esse conflito ser por vezes descartado, não devia. A Guerra Civil da Síria tem dominado a geopolítica, tem colocado frente a frente e testado alguns dos mais poderosos do mundo, como os Estados Unidos, o Irã, a Rússia e a Turquia. Esse conflito marcará pelo menos uma década de relações internacionais, correntes de filosofia política e a vida de milhões envolvidos.

Diana Vasconcellos é pós-graduada em Diplomacia e licenciada em Ciências Políticas e Relações Internacionais pela Universidade Católica Portuguesa

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