Gabriel Chalita, colunista do DIA - Divulgação
Gabriel Chalita, colunista do DIADivulgação
Por Gabriel Chalita*
Não sei, exatamente, a causa, embora tenha pesquisado com vagar. Li o que pude. Perguntei para pessoas que, prontamente, deram todo tipo de orientação. E fui seguindo uma a uma. Sem pestanejar.

Um longo soluço era algo que eu nunca tinha experimentado. Começou sem que eu percebesse. Era o meio de um dia confuso. Mas eu estava bem. E comecei a soluçar. Tomei água. E nada. Tomei água, vagarosamente. E nada. Tomei água ao contrário, como disseram. E, por alguns instantes, achei que havia ficado livre dessa angústia sufocante. Depois, voltou. Levei alguns sustos de amigos com boa vontade. E nada.

Enquanto isso, ia pesquisando outros caminhos e, enquanto pesquisava, ia me assustando com o que via. Pessoas agredindo outras em uma saída de hotel. Com palavras de insensatez. E outras atiçando em tom ameaçador. E incentivando os ataques. O momento é de susto. O aumento de estupros de vulneráveis torna vulnerável a raça humana. Como ainda não conseguimos abrir as inteligências para compreender e resolver as violências? As mentiras programadas na divulgação de novas doenças. E a dança das bolsas de valores. Quem são os que ganham com as desgraças? Não sou entendido de muita coisa, mas gosto de cheirar as impressões. Fico impressionado com os lucros dos bancos. Em qualquer tempo. De vírus ou de festa. De crise ou de alegria.

É difícil até de comer com o soluço. Ligo para um médico amigo de um amigo. Diz coisas que me acalmam. Vai passar. Olho para os tempos que estamos vivendo e tento dizer o mesmo. Vejo um médico visitando, numa cadeia, quem nunca recebe visita. E fico emocionado. Quero, também, abraçar os que ninguém abraça. Mas o soluço me impede muitos pensamentos.

Durmo com o soluço. De repente, silêncio. Acordo, depois de um pesadelo, e volto a soluçar. Na escola do meu sobrinho, um aluno filmou a professora e lançou ameaças. Nada de defender as mulheres. É contra a família esse tal de feminismo. A professora fica atônita. Reage nada. E olha para algum lugar tentando entender o que não tem entendimento. Dois jovens são agredidos porque se olhavam em uma calçada qualquer. Pesadelo. Nas ruas, alguns dormem, enquanto outros dizem o que ninguém deveria dizer. Falam em limpeza como se gente se assemelhasse a lixo.

Prendo a respiração na madrugada. Tenho medo de morrer. O soluço vai embora e volta. Muitos são os que morrem prematuramente. Jovens de um bairro que fica longe morrem mais cedo do que os jovens dos lugares onde há proteção. E aí vem a chuva. E alguns choram o que perderam. E outros dizem o que não deveria ser dito por alguém que tem o poder de fazer o que não foi feito.

O soluço pode vir de alguma contração do diafragma ou pode ser do esôfago ou do estômago. Fui ouvindo o médico. Que me lascou alguns remédios. E que me garantiu que passaria.

Que remédio tem para o país em que vivo? O que está acontecendo com os que, a plenos pulmões, soluçam impropérios? E falam em fim da democracia. E gritam pela morte dos que incomodam. E unham os dias como que arranhando um tempo da nossa história.

O médico estava certo. Hoje, acordei sem o tal soluço. Parece história inventada, mas não é. Foram três dias de soluços com uma ou outra pausa. E um cansaço tomou conta de mim. Tenho medo de que as pessoas do meu país se cansem de acreditar. Que se acostumem com os que mentem, com os que desfilam preconceitos, com os que desrespeitam as pessoas.

Fiquei pensando no médico bom que foi à prisão. Fiquei sonhando que outros fizessem o mesmo. Que deixassem de agredir para acolher. Que deixassem de iludir para proclamar o que nos pacifica. Saudade dos líderes que falavam em paz. Só ouço vozes querendo morte, querendo vingança, querendo guerra.

Durante o soluço, fiquei pensando no tempo em que estava bem. Só valorizamos a saúde, quando a doença nos incomoda. Estamos ou não incomodados com esses tempos? Se não estivermos, é porque algo estranho nos foi receitado. E acreditamos. Ou, talvez, porque ao tomarmos água de cabeça para baixo tenhamos perdido a capacidade de ver. Ou, então, nos fechamos com medo da rua. Da rua onde moram os passos que precisamos dar para chegar onde precisamos chegar. Acompanhados.

O mal que se faz a um se faz a humanidade inteira, foi o que disse algum filósofo. Eu ainda acredito na bondade. Mesmo com tudo o que vejo. Mesmo nos dias em que o soluço tomava todo o meu tempo, eu sonhava com o respirar tranquilo de um mundo mais irmão.

É domingo e estou ouvindo Beethoven. E há algumas presas que ninguém visita. Como o soluço já passou, eu vou fazer a minha parte. Mesmo que parte dos meus irmãos ainda estejam adormecidos.
*Gabriel Chalita é professor e escritor