Gabriel Chalita, colunista do DIA - Divulgação
Gabriel Chalita, colunista do DIADivulgação
Por Gabriel Chalita*
Deixe-me explicar, não é de hoje que venho me aborrecendo com a vida. Fui uma mulher que sofreu inteira cada sofrimento. Que se rasgou mais de uma vez. Que chorou até esgotar o dia da dor. E já faz algum tempo. Foi quando decidi viver sozinha. Os riscos fazem parte da vida, mas chega uma hora que é melhor abraçar o que ficou e agradecer.

Tenho um único filho. Viveu ele fora durante algum tempo. Ganhou bolsa e estudou na Inglaterra. O pai dele nunca o reconheceu. Talvez seja eu um pouco culpada. Orgulho de quem não se sente amada, sabe? Queria que ele estivesse comigo por mim, não pela gravidez. Fingi esquecimento. Disse que o amor havia ido embora. Falei o que decidi, sem chorar. E convenci. Vi o homem que eu amava partindo sem compreender. E nunca mais nos vimos.

Tive dois outros companheiros. O primeiro, uma doença levou. Era bom demais para permanecer em um mundo tão ruim, foi o que a mãe dele me disse no dia do sepultamento. Não sei por que ela disse isso, mas sou mãe e perdoo qualquer soluço fora de tom em nome de um filho. O outro, fiz morrer em mim. Não recrimino os que são doentes de nascença, mas, os que ficam alquebrados pela bebida, desses, eu me distancio. Outro choro seco. Disse o que tinha de dizer e despenquei sozinha enquanto a noite me assistia. Um outro, que quase namorei, achei violento demais. Nunca aceitei voz alterada. Nunca. Se cultivo a polidez, dos outros, exijo o mesmo.

Não faz tempo, me aposentei. E dediquei os dias na pequena horta, que cultivo no pequeno quintal. Gosto de cozinhar e aceito convites para trabalhos esporádicos em dias de festa. E, assim, gasto minha vida. Tenho amigos. Tenho convites para incursões (não é melhor excursões?) em passeios felizes.
Faz pouco menos de um mês que meu filho voltou. Voltou e veio para casa. Eu sabia que ele havia se comunicado com o pai, enquanto estava fora. Eu mesma assenti. Quando ele me disse que convidaria o pai para a formatura, eu achei estranho primeiro e, depois, deixei a ele a decisão. Souberam um do outro por circunstâncias da vida. O pai enviuvou há pouco. E um outro brasileiro que estudava com ele era amigo do seu meio-irmão. Que coisa. Por uma foto, se acharam parecidos. Por algumas perguntas, entenderam o que ficou faltando na história deles.

Meu filho pediu a mim que o pai pudesse nos visitar. Eu, como de costume, disse “não”. Tenho essa mania. Digo “não” e faço o contrário. Confesso que fiquei dias em preparo na espera dos dois. O maior amor da minha vida, meu filho, e o homem que, por alguma razão, eu fiz partir. Meu filho chegou primeiro. O dia se iluminou em minha casa. Preparei o meu coração para que ele sentisse o quanto fez falta, preparei a casa para que o que é simples se enfeitasse de luz. Deixamos a noite intranquila de tanta conversa que havia para ser conversada.

Disse ele que precisaria ficar de quarentena, que estava chegando de viagem, que os afetos precisariam respeitar alguma distância. Ainda não falavam muito do tal do isolamento social. Mas nos precavemos como conseguimos. E, no dia que se seguia a essa alegria, chegou o primeiro homem que amei. Os dois se olharam como se nunca tivessem deixado de se amar. Pai e filho. Eu olhei aqueles olhares e pedi ao mundo que se ajoelhasse comigo em oração de gratidão. Ele me olhou com medo. O mesmo medo do dia em que determinei que ele deveria partir. O mesmo medo do dia da mentira, quando tive a insensatez de dizer que o amor acabou. Os anos não gastaram sua beleza. E, mesmo contra todos os prognósticos, senti um sentimento novamente arrebatador dentro de mim. Ele percebeu. E riu. Pensei que teria que ficar com ele uma semana. A passagem da volta já estava comprada.

Na primeira noite, nos olhamos, conversamos e fizemos nada. Na segunda noite, nosso filho foi dormir primeiro e ficamos nós, acordados. Na terceira noite, soubemos que o melhor era permanecer em casa, enquanto o mundo não vencesse o vírus. Ouvi das vizinhas reclamações. Ouvi reparos de quem não aguenta mais os filhos dentro de casa. De mulheres que não suportam mais os maridos. Li que, em algum lugar, o número de divórcios aumentou. Pois é, eu que vivi das dores, posso dizer que esse vírus me faz ficar em casa com os homens que mais amo na minha vida.

Ontem, enquanto mexia na horta, ele veio descalço e com uma bermuda parecida com a que ele usava quando éramos jovens e quando, pela primeira vez, nos sucumbimos. Disse que nunca me esqueceu. Eu disse nada. Meus olhos disseram. Ali mesmo nos beijamos. Separados do mundo, nos encontramos.
*Gabriel Chalita é professor e escritor