O Brasil, apesar de uma mudança significativa no discurso apresentado pela grande mídia, que passou a defender a intervenção do Estado e políticas públicas, está indo na contramão dos esforços mundiais. Há um forte debate incitado a partir de pronunciamentos do presidente da república sobre uma falsa polêmica: salvar vidas versus preservar a economia e os empregos. A ideia de que o país vai quebrar se mantivermos o isolamento social por causa de uma “gripezinha” esconde a perversidade de um sistema que concentra riqueza na mão de poucas pessoas e despreza os mais pobres.
É preciso considerar também que, até o momento, a maioria das mortes que estão sendo contabilizadas estão nos hospitais privados. Mas, não temos dúvidas de que atingirá também os mais pobres, público alvo de um fundamentalismo religioso. E pensar essa relação das camadas mais pobres com a religião, o papel que a ciência e o Estado cumprem ou devem cumprir tornou-se elemento de grande importância diante da conjuntura que atravessamos.
A evidente relevância das ciências nesse momento de pandemia, configura-se como um problema para grupos fundamentalistas, que possuem um discurso anticientíficas e anti-intelectualistas em suas narrativas de mundo. Dessa forma, frente a pandemia, a opção desses grupos religiosos é a de minimizar a importância da doença. Em vídeos recentes, amplamente divulgados pelas redes sociais, dois líderes religiosos importantes disseram que não fechariam suas igrejas por causa de uma gripe e que a fé em Deus seria o suficiente para derrotar o vírus. O presidente da república se tornou o exemplo mais evidente do dilema trazido pelo fundamentalismo religioso: frente a pandemia só a ciência é capaz de garantir vidas e a própria manutenção das relações sociais, mas isso significa negar um discurso que manteve suas bases fiéis até o momento. A escolha feita foi: o presidente incluiu as religiões como serviços essenciais, decreto 10.292/20, garantindo os interesses dos grupos mais fundamentalistas.
O comportamento do poder público brasileiro e do chefe do executivo não surpreendente. Há muito que a imbricação entre religião e Estado está cada vez mais forte no Brasil. Diferentes instituições religiosas interferem cotidianamente em nossos órgãos legislativos e de maneira muito evidente orientam o executivo federal. Diante do inevitável crescimento dessa pandemia a laicidade, ou seja, separação entre Estado e Igreja, torna-se cada vez mais importante. E neste cenário complexo, de muitas redefinições em curso, de luta política acirrada por um outro mundo pós pandemia, o Brasil também tem a chance de rever a relação histórica do nosso Estado com as religiões. Esperamos que nossas políticas públicas, leis e ações governamentais respeitem e reconheçam a ciência e os diferentes campos de estudos e que sejam para todos e todas, crentes e não crentes. Medidas necessárias nesse momento para nossa saúde, para nossa sobrevivência, mas para o nosso futuro. Um futuro democrático.
*Amanda Mendonça é doutora em política social, professora de sociologia e pesquisadora do Observatório da Laicidade da Educação
*José Antônio Sepúlveda é doutor em educação, professor do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense e coordenador do Observatório da Laicidade da Educação