Por Amanda Mendonça e José Antônio Sepúlveda*
Estamos vivendo a primeira grande crise de saúde pública do século XXI. Os números são assustadores e amplamente informados pela grande mídia, como mostra a situação da Itália e Espanha, que apresentam um altíssimo índice de mortalidade provocado pela doença. Vemos no mundo todo esforço de mobilização dos países centrais do capitalismo de salvar suas economias através de uma ampla participação do Estado, garantindo renda aos mais pobres e assegurando o isolamento social.

O Brasil, apesar de uma mudança significativa no discurso apresentado pela grande mídia, que passou a defender a intervenção do Estado e políticas públicas, está indo na contramão dos esforços mundiais. Há um forte debate incitado a partir de pronunciamentos do presidente da república sobre uma falsa polêmica: salvar vidas versus preservar a economia e os empregos. A ideia de que o país vai quebrar se mantivermos o isolamento social por causa de uma “gripezinha” esconde a perversidade de um sistema que concentra riqueza na mão de poucas pessoas e despreza os mais pobres.

É preciso considerar também que, até o momento, a maioria das mortes que estão sendo contabilizadas estão nos hospitais privados. Mas, não temos dúvidas de que atingirá também os mais pobres, público alvo de um fundamentalismo religioso. E pensar essa relação das camadas mais pobres com a religião, o papel que a ciência e o Estado cumprem ou devem cumprir tornou-se elemento de grande importância diante da conjuntura que atravessamos.

A evidente relevância das ciências nesse momento de pandemia, configura-se como um problema para grupos fundamentalistas, que possuem um discurso anticientíficas e anti-intelectualistas em suas narrativas de mundo. Dessa forma, frente a pandemia, a opção desses grupos religiosos é a de minimizar a importância da doença. Em vídeos recentes, amplamente divulgados pelas redes sociais, dois líderes religiosos importantes disseram que não fechariam suas igrejas por causa de uma gripe e que a fé em Deus seria o suficiente para derrotar o vírus. O presidente da república se tornou o exemplo mais evidente do dilema trazido pelo fundamentalismo religioso: frente a pandemia só a ciência é capaz de garantir vidas e a própria manutenção das relações sociais, mas isso significa negar um discurso que manteve suas bases fiéis até o momento. A escolha feita foi: o presidente incluiu as religiões como serviços essenciais, decreto 10.292/20, garantindo os interesses dos grupos mais fundamentalistas.

O comportamento do poder público brasileiro e do chefe do executivo não surpreendente. Há muito que a imbricação entre religião e Estado está cada vez mais forte no Brasil. Diferentes instituições religiosas interferem cotidianamente em nossos órgãos legislativos e de maneira muito evidente orientam o executivo federal. Diante do inevitável crescimento dessa pandemia a laicidade, ou seja, separação entre Estado e Igreja, torna-se cada vez mais importante. E neste cenário complexo, de muitas redefinições em curso, de luta política acirrada por um outro mundo pós pandemia, o Brasil também tem a chance de rever a relação histórica do nosso Estado com as religiões. Esperamos que nossas políticas públicas, leis e ações governamentais respeitem e reconheçam a ciência e os diferentes campos de estudos e que sejam para todos e todas, crentes e não crentes. Medidas necessárias nesse momento para nossa saúde, para nossa sobrevivência, mas para o nosso futuro. Um futuro democrático.

*Amanda Mendonça é doutora em política social, professora de sociologia e pesquisadora do Observatório da Laicidade da Educação 

*José Antônio Sepúlveda é doutor em educação, professor do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense e coordenador do Observatório da Laicidade da Educação