Gabriel Chalita, colunista do DIA - Divulgação
Gabriel Chalita, colunista do DIADivulgação
Por Gabriel Chalita*
Sou aluna de escola pública desde sempre. E, desde sempre, defendo meus professores. E, desde sempre, me embalo na certeza de que o que faço, hoje, é porta que abre o meu amanhã.

Estudo com afinco. Venho de um lar despedaçado. Meu irmão está preso. E não é primeira vez. Minha mãe conversa com os pensamentos e deixa para chorar sozinha, quando se tranca em seu silêncio. Meu pai foi morto em um dia triste. Briga de grupos rivais. Ódios acumulados por desobedecedores de leis sem leis. De regras criadas em paralelo. Mundo desconhecido de muita gente. Mundo que corre nas minha veias fortes. De mulher pobre e resistente.

Gosto das interrogações e não das exclamações, por isso perguntei a mim mesma o que fazer para ter o direito de escolher. Respondi, como primeiro pagamento de minha indagação, "Conhecimento". É o conhecimento que me vai levar a um futuro que leio nos livros e que imagino, quando consigo, quando os dias não estão tão quentes.

E, por isso, estudo. Com afinco. E, por isso, cuido de cuidar das feridas da minha mãe. Ficamos apenas nós e duas primas que moram conosco. Filhas de uma tia que morreu de espera. Só quem já precisou sabe o que é aguardar por um atendimento na saúde pública. O dela não chegou.

Termino este ano o ensino médio. As aulas foram paralisadas. O medo virou um vento quente que não dá trégua. Minha mãe sai para trabalhar. Com medo. A patroa dela tem uma filha da minha idade. Que estuda em uma escola que jamais poderíamos pagar. Mas não lamento. Gosto da minha. O que lamento é não ter aulas nesse tempo de pausas. Ela tem. Por plataformas digitais, ela tem aula todos os dias. Eu leio os poucos livros que tenho. A internet aqui não é ilimitada. Ilimitado é o amor que mora no coração da minha mãe.

No dias das mães, nos encaixamos em um canto da sala e nos pusemos a falar alegrias. Foi bom. Com isso, assustamos o medo e tivemos um dia calmo. Minhas primas são mais novas. Ficam comigo em casa. Também não tem aula. Gosto de ser professora para elas. Enquanto ensino, aprendo. Até gostaria de seguir essa profissão mas resolvi ser juíza. Vou fazer direito para endireitar o mundo. E aos que me julgam sonhadora, aguardem. Sou forte, já disse. Aprendi com os fortes e com os fracos. Vi as quedas e decidi permanecer em pé. Vi os caminhantes e falei para eles, "Vamos juntos". Há muito trabalho a fazer na melhoria do mundo.

Preciso entrar em uma universidade pública. Não há como termos qualquer outro gasto. Ouço conversar sobre o ENEM. Se pudesse dizer algo para quem tem o poder de decidir, diria, "Não matem o meu futuro!". Nesse caso, é exclamação. É preciso um grito de realidade para que nos ouçam. Não é justo que quem mais precisa seja prejudicado. Se pudessem nos ouvir, construiriam um outro calendário, depois do fim da pandemia, com a volta das aulas e, aí sim, o ENEM.

Há muitas distorções neste país. Mas há um caminho, sempre há um caminho. A educação é a mais importante política pública, pois ela tem o poder de melhorar todas as outras. Um povo educado anda para frente, sem deixar ninguém para trás. Um povo educado tem humanidade, tem sensibilidade, tem amor.

Amo a vida, apesar das dores. Amo o fim do dia, quando minha mãe volta do trabalho e come a comida que eu preparei. E quando minhas primas contam as histórias que eu contei. E, depois de alimentadas, lavamos juntas o necessário.

Amo o amanhecer, porque gosto dos silêncios iluminados. De onde moramos, vemos a perfeição da natureza. Eu sempre sonhei que ela inspirasse o homem. As cidades foram crescendo barulhentas. Pena! Tem jeito de arrumar? Tem jeito de limpar a violência? Tem jeito de acabar com a perversidade?

Às vezes, choro, quando penso na aspereza do caminho, mas, depois, me lembro de quem eu sou: uma mulher forte que vai endireitar o mundo!
*Gabriel Chalita é professor e escritor