Manuela Soares - Divulgação
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Por Manuela Soares*
Nestes mais de 90 dias de durante-pandemia do novo coronavírus, para além do lado mais trágico que são as mortes pela doença, no mundo do trabalho, quem sobreviveu às demissões ou ao cancelamento de contratos se deparou com o isolamento laboral.

Fora das lives, o modelo home office implantado às pressas por conta da Covid-19 não reflete a imagem de artistas e influenciadores e em suas aventuras culinárias e cantinhos de yoga “aproveitando mais o tempo para cuidar da gente”.

O susto da pandemia levou todo o trabalho para casa e a maioria das empresas não estava preparada para garantir recursos e insumos a seus funcionários. “Minha internet vai dar conta?” “Meu computador tem memória suficiente?” “Vou ter que improvisar uma mesa de trabalho na cozinha.”

Às tarefas profissionais foi somado o trabalho doméstico, além dos cuidados com parentes que se encontram nos grupos de risco. Vale o destaque de que a barra pesa bem mais para as mulheres que, historicamente, já davam conta desse sobretrabalho não remunerado.

Sim, há ganhos para alguns. Recebi avaliações positivas sobre o home office de quem passou a trabalhar em casa a partir da pandemia, não como efeito de políticas de gestão, sim por condições particulares. Mas não são poucos os que têm entrado em sofrimento para se adaptar.

A gestão neoliberal do trabalho levou o Brasil e diversos países a altíssimas taxas de adoecimento por transtornos mentais, que só perdem (ainda) para lesões físicas como a LER-Dort. Diante da necessidade de intensificar a produção para garantir o lugar ao sol no mercado, as gerências, quando não estimulam, não criam mecanismos para conter o assédio, a cobrança por metas inalcançáveis e o acúmulo de funções.

No contexto da pandemia e na sua perpetuação como regime de trabalho, o glamourizado home office pode se transformar em mais um fator de adoecimento. A perda da noção de jornada a partir da fusão entre o tempo do trabalho e o tempo livre já ocorria mesmo antes de levarmos o escritório para a casa. O regime 24/7 é uma realidade para muitos, especialmente a partir do surgimento dos aplicativos de conversa.

Dificilmente deixamos de responder às demandas que surgem a qualquer momento do dia e da noite. No trabalho remoto as solicitações “fora de hora” tendem a ser ainda mais frequentes. Como dizer não em uma conjuntura de crise extrema, na qual estamos sujeitos mais do que nunca a sermos dispensados?

A naturalização do trabalho isolado ainda vem ao encontro de uma sociedade que preza pelo individualismo em detrimento do coletivo. Estamos tomando aquele antigo cafezinho da copa do escritório, sozinhos, em frente à tela, num trabalho intermitente para suprir a falta dos que foram demitidos.

Me parece que a ausência das dinâmicas presenciais no processo de trabalho pode ser uma porta para a quebra da confiança e da solidariedade entre nós. Uma ruptura dos laços que são construídos nos encontros coletivos do ambiente laboral, nos afetos que atravessam esses encontros e suas convergências de interesse.
*Manuela Soares é jornalista, mestre em educação, gestão e difusão em biociências pela UFRJ