Opressão dos pobres, intolerância religiosa, polícia e democracia - ARTE KIKO
Opressão dos pobres, intolerância religiosa, polícia e democraciaARTE KIKO
Por William Douglas* e Rogério Greco**
Rio - Uma reportagem veiculada pela Globoplay em 24 de julho de 2020, noticia expressamente que "violência oprime moradores de Cordovil, Parada de Lucas e Brás de Pina". Em tempos nos quais tanto se fala em atos antidemocráticos, parece estar havendo atenção insuficiente das autoridades para situações graves como as abordadas na referida matéria.
Haver extensas regiões, onde cidadãos brasileiros são submetidos a um estado paralelo, onde a "lei" é ditada por traficantes, é algo que traz lesão à integridade territorial e à democracia.
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Não resta qualquer dúvida que inexiste Estado de Direito quando temos territórios demarcados, onde a Polícia não consegue ingressar, onde os cidadãos não têm a quem recorrer. Isto impacta a democracia e a ordem social. Não pode haver um bolsão com brasileiros fora do alcance da proteção do Estado. Se isso acontece, vemos os resultados: as pessoas são mortas, oprimidas, espoliadas, somem... e seus parentes e amigos sequer podem buscar socorro junto às autoridades.
Dentro deste cenário de caos e terra sem lei, os chefes do tráfico impõem a todos sua versão deturpada de religião, atacando a fé de católicos, umbandistas e candomblecistas. Este segundo fenômeno, em que as imagens de santos católicos e os locais de culto dos umbandistas e candomblecistas são vilipendiados, mostra a total perda do império da lei que estamos vivendo.
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Sabemos que quando a polícia atua coibindo a ação desses traficantes, em alguns casos, infelizmente, erros podem ocorrer. O que poucos se dão conta é que tais erros são submetidos ao escrutínio das autoridades e do povo, e os eventuais culpados são levados a julgamento. De modo diverso, todo e qualquer abuso de traficantes está fora de controle, ainda mais quando a polícia não pode agir. Os erros em operações policiais são infinitamente mais noticiados do que as mortes causadas por traficantes.
A matéria acima mencionada descreve situação inaceitável de brasileiros submetidos a opressão e ao crime sem terem a quem recorrer. Há quem defenda, ainda, que os policiais sejam impedidos de agir e isso deixa os traficantes livres para fazê-lo, a exemplo do que ocorreu com a determinação do STF, impedindo a polícia de operar nas comunidades cariocas, salvo em casos excepcionais. O resultado é óbvio: as fronteiras territoriais, a ousadia e o terror expandem-se tão ou mais rápido que a COVID-19. Só que sem ter "hospitais" a quem recorrer.
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Os articulistas são cristãos evangélicos e, como todos sabem, por motivos de sua doutrina teológica, avessos a qualquer imagem. E somos os primeiros a dizer que são inaceitáveis quaisquer vilipêndios a imagens, símbolos e objetos de cultos religiosos, quer sejam católicos, da umbanda, do candomblé, islâmicos, judeus ou qualquer outro. Uma coisa é discordar teologicamente das imagens, outra, abissal e exponencialmente diferente, é aceitar que a liberdade religiosa de nossos concidadãos seja ultrajada ou desrespeitada.
Acrescentamos que os ministros religiosos que apoiam ou se beneficiam dessas ações criminosas devem responder penalmente com os agentes. Se há incentivo, é caso clássico de concurso de pessoas. Entendemos que punir qualquer um que receba contribuições oriundas do tráfico e/ou que chancele ou incentive discriminação religiosa é essencial para interromper este tipo de absurdo. O país que desejamos, descrito na Constituição Federal, é aquele onde todos podem viver sua religiosidade sem ser incomodados ou perseguidos por quem quer que seja.
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Nesse passo, encaminhamos ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos proposta para que o vilipêndio a templos e símbolos religiosos seja incluído na definição de terrorismo. A vantagem dessa medida está em aumento substancial da pena e na transferência da competência para a Justiça Federal. Assim, o traficante que, além dos demais crimes, oprime a religiosidade alheia, terá em seu encalço não só as prestimosas e honradas Polícias Civil e Militar dos Estados, mas, na questão da invasão a templos, também a prestimosa e honrada Polícia Federal.
Agradecemos a sensibilidade da Ministra Damares Alves, que encampou a proposta, a qual já tinha sido mencionada na Comissão Diálogo e Paz e na CCIR – Comissão de Combate à Intolerância Religiosa, ambas do Rio de Janeiro. Sobre a pertinência da inovação legislativa, reportamo-nos ao nosso artigo "Invasão a Terreiros e Terrorismo", publicado, em 3 de janeiro de 2020, em diversos órgãos da mídia.
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Por fim, cabe mencionar e elogiar o Estado do Rio de Janeiro por ter uma Delegacia especializada no tema, a Decradi. A Delegacia de Combate aos Crimes Raciais e Delitos de Intolerância, sob o comando do Delegado de Polícia Gilbert Stivanello, tem feito excelente trabalho, que só não é ainda melhor pela falta de maiores meios e quantidade de pessoal. Vale dizer que tal Especializada foi criada, em 2011, por lei de iniciativa do Deputado Estadual Átila Nunes, mas só saiu do papel recentemente, por iniciativa do General Walter Souza Braga Netto, atual Ministro Chefe da Casa Civil, quando atuou como interventor federal no Rio.
Em que pese o efetivo escasso, tal unidade tem focado na investigação e na identificação desses criminosos, também autores dos atos de intolerância religiosa. Em paralelo, articula e conta com a valiosa colaboração das Delegacias Distritais, e em especial da Delegacia de Combate às Drogas, na intensificação das ações de combate ao tráfico de drogas nas localidades onde tais atos de intolerância religiosa ocorrem, como pragmático mecanismo inibitório de tais práticas.
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Serve como exemplo a sequência de ações desencadeadas na comunidade do “Buraco do Boi” em Nova Iguaçu, onde, após ataques do tráfico contra templo religioso, que culminaram na expulsão de seu proprietário, foram realizadas operações de combate ao tráfico, pela Decradi em conjunto com o Batalhão da Polícia Militar da área, seguidas por operações conjuntas com a 58a Delegacia de Polícia e a Delegacia de Combate às Drogas. Somada a tais operações, foi conduzida investigação específica das ações de intolerância religiosa, que resultou na obtenção de mandados de prisão preventiva contra os mandantes de tal crime.
No atual momento, o chefe local do tráfico no Buraco do Boi já se encontra preso e respondendo criminalmente pelo delito de intolerância religiosa, somado a delitos de tortura etc. apurados pela Decradi, e também a crimes relacionados às atividades do tráfico decorrentes de investigações realizadas pela 58a Delegacia de Polícia e pela Delegacia de Combate às Drogas. Tais ações culminaram com nova investigação e operação realizada pela Delegacia de Combate às Drogas, que resultou na prisão de mais três traficantes do local. Fato é que traficantes de drogas, outrora observados com menor relevância no cenário do tráfico no Estado do Rio de Janeiro, passaram a receber atenção multiplicada em razão do acréscimo das ações de intolerância religiosa às suas atividades criminosas, o que retrata a relevância conferida pela Polícia Civil a tal temática. Ou seja, as autoridades federais e estaduais estão agindo e tendo sucesso na identificação dos autores de tais crimes. Cremos que a modificação legislativa irá aumentar o combate a esta inaceitável violação dos direitos humanos. Precisamos dar à Polícia cada vez melhores condições de atuar, o que traz benefício para a população hoje submetida à opressão de criminosos.
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Concluindo, reforçamos que a sociedade precisa aprender a respeitar a Polícia. Como toda instituição, ela precisa ser aperfeiçoada, mas jamais esquecida, tolhida ou sucateada. Também precisamos superar diferenças ideológicas, religiosas ou quaisquer outras e nos unirmos em uma pauta comum que inclua o respeito ao sagrado do outro. Este é o melhor caminho para o respeito ao nosso sagrado, ao nosso laico, ao Estado de Direito e à democracia.
William Douglas é Juiz Federal, Professor Universitário e membro da Educafro. Rogério Greco é Pós-Doutor, Doutor e Mestre em Direito Penal. Ambos são escritores.