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Ricardo GaluppoRicardo Galuppo
Por Ricardo Galuppo*
Passadas as eleições nos Estados Unidos, um detalhe da biografia do presidente eleito Joe Biden passou a ser mencionado como curiosidade por vários jornais do mundo. O democrata Biden, para quem não sabe, é católico. Mais do que isso, é apenas o segundo entre os 46 eleitos para governar a maior democracia do mundo a professar essa fé. O outro foi o também democrata John Kennedy, eleito em 1960. Que peso isso terá na administração e na escolha dos auxiliares do presidente? Nenhum.
Nos países avançados, a religião é algo secundário para a definição dos votos dos eleitores. Muito mais do que as afinidades relacionadas com a fé, o que pesa na escolha do eleitor são os princípios defendidos em relação àquilo que realmente interessa para o eleitor. O que interessa? “É a Economia, estúpido!”.
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Não existe na resposta a menor intenção de ofender a quem quer que seja. Criada pelo marqueteiro norte-americano James Carville, a frase foi usada por Bill Clinton na campanha à presidência dos Estados Unidos em 1992. Com o país sob recessão, o então desconhecido ex-governador do inexpressivo estado de Arkansas desafiou o prestígio do presidente George Bush, o pai, e obteve uma vitória que parecia tão improvável quanto a de Biden sobre o presidente Donald Trump na campanha eleitoral deste ano.

“GENITÁLIA DESNUDA” — Recordar esses fatos é fundamental. O Brasil irá às urnas para escolher os prefeitos e os vereadores dos municípios brasileiros para os próximos quatro anos. E por aqui, ao contrário do que acontece nos países evoluídos, o apelo religioso tem sido cada vez mais utilizado nas disputas eleitorais. O presidente Jair Bolsonaro, em 2018, foi eficaz ao atrair para sua base de apoio a parte mais expressiva das lideranças evangélicas do país. E soube, no exercício do mandato, manter a coesão dessa base ao fazer acenos frequentes para o grupo.
O que isso tem a ver com estas eleições? Tudo — especialmente no Rio de Janeiro, onde o prefeito Marcelo Crivella disputa a reeleição. Bispo da Igreja Universal do Reino de Deus, Crivella jamais escondeu, no exercício do atual mandato, que toma decisões mais com base em seus valores religiosos do que nos interesses da maioria da população. Um exemplo disso foi sua postura em relação ao Carnaval. Numa cidade que tem na folia uma de suas marcas culturais mais destacadas, Crivella terminará o mandato como o único prefeito da história que nunca pôs os pés na Marquês de Sapucaí durante os desfiles das Escolas de Samba.
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Todos temos o direito de gostar ou não gostar do Carnaval. Da mesma forma, cada um se envolve com a festa da forma que julga mais conveniente. Ninguém está cobrando de Crivella um comportamento como o do ex-presidente Itamar Franco, que em 1994, se deixou fotografar no sambódromo ao lado da modelo Lílian Ramos, que vestia uma camiseta e... mais nada. A da moça com “a genitália desnuda” (para utilizar uma expressão famosa na avenida) ao lado do presidente causou constrangimento e ficou para sempre ligada à figura de Itamar.
Ninguém espera de Crivella a mesma saliência de Itamar. Mas, numa cidade com as características do Rio, ele teria, mais do que uma desculpa, a obrigação de por lado suas convicções religiosas para, pelo menos, dar uma passada na avenida antes que o clima fervesse. O que determina essa obrigação? A Economia, estúpido! O Carnaval não é apenas uma festa em que as pessoas extravasam suas emoções. É, também, um evento econômico de alta relevância para o Rio e ignorá-lo é, no mínimo, é uma demonstração de insensibilidade administrativa.

VÍTIMA DE PRECONCEITO — O Brasil é um país laico e a escolha da religião é questão de foro íntimo. Ao longo da história, outros políticos protestantes governaram sem que a orientação religiosa interferisse em suas ações. O general Ernesto Geisel, que presidiu o Brasil entre 1974 e 1979, era luterano. Goste-se ou não de seu governo, o certo é que a religião jamais pesou em suas decisões. O certo é que, no Brasil ou em qualquer outra parte do mundo, todos saem perdendo quando os interesses religiosos passam a gerar privilégios para os que professam a mesma fé.
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Calma. Ninguém está reduzindo a importância dos valores religiosos. Se praticados com sinceridade (algo que, por sinal, tem sido raro no Brasil) evitam que os políticos ponham a mão onde não devem. O que não é aceitável, porém, é governar apenas para um grupo religioso e ainda posar de vítima de preconceito quando esse fato é mencionado.
Parte da força do Rio está na diversidade e na pluralidade. Para superar o momento difícil, a cidade terá que adotar uma série de ações afirmativas que contribuirão para eliminar gradualmente a carga de preconceito que ainda existe. Muito diferente disso, porém, é denunciar o preconceito onde ele não existe. Essa e uma prática antidemocrática e serve apenas para dificultar a luta pela igualdade, que ainda está longe de terminar.
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*É jornalista, escritor e colunista do portal iG