Publicado 11/05/2021 05:50
“De repente a peste passou. E então ninguém pensou mais nos mortos, enterrados nas valas, uns por cima dos outros (...) Muitos caíam, rente ao meio-fio, com a cara enfiada no ralo. E ficavam lá, estendidos, como se fossem não mortos, mas bêbados”. As linhas acima foram extraídas de uma crônica de Nelson Rodrigues, publicada em fevereiro de 1971. Referia-se à peste que no início do século passado (1918) causara triste e monumental estrago no Rio de Janeiro, no Brasil e no mundo, a afamada e malfada gripe espanhola.
O grande cronista tinha então seis anos de idade. Morto em 1980, não viu a peste se repetir no século 21, começando em 2020, invadindo ano seguinte e sabe a Deus até onde vai. Também deixou marcas profundas na população carioca, brasileira, mundial. Marcas tristes, duras, feias. A doença terrível chegou ao país exatamente num momento em que vivíamos grave desacerto na Saúde, na Educação, na Cultura, na Ciência e Tecnologia. A pandemia do autoritarismo estava entre nós, eleita e já muito bem
instalada.
instalada.
A peste brota dos intestinos da terra, dos resquícios da guerra, do inferno provisório. Pode ser criada em laboratório, gestada, plantada, refeita. Machuca quando abre a boca. Assusta com sua voz rouca. Que não é das ruas, mas dos esgotos. A peste cospe sobre nós os perdigotos. É áspera, é dura, betume, cimento. E causa tanto sofrimento.
Quando a peste passou por aqui, longos dias por aqui ficou. Sabemos que a desgraça no mundo inteiro se instalou. E o que menos importa é saber onde começou: na China? Na Cochinchina? Em Singapura? Talvez nas entranhas da ditadura. Não há mal que sempre dure, nem bem que nunca se acabe; mas assim se elegeu a peste que nos cabe.
Morremos, ninguém socorre. Morremos em cada amigo que hoje morre. Morremos também de tristeza, do pão que não chega à mesa, da esperança regrada. E a peste quer fazer do limão a limonada. Abre o curral e libera sua boiada, para gritar nas ruas, infiéis levando arrocho e suadouro: são bois a caminho do matadouro.
A esperança é a última que morre, embora a maioria dos esperançosos morra antes. Mas vamos botar fé na fé do Navegante, que a História poderá ser recontada. E rezar para a peste ser afastada, para a vida retomar o seu caminho, para o amor imperar frente ao espinho, a noite abrir as asas para o sol, a coragem falar mais alto nesta hora, afastando o medo que tanto apavora, redobrando as forças para lutar.
Que juntamente com as pandemias seja varrida a arrogância, a petulância, a intolerância e todas as megalomanias. Pois aqui a peste se instalou dobrada: uma que ninguém pediu; outra que foi encomendada.
É jornalista e escritor
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