Wagner Cinelli de Paula Freitas é desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro Divulgação
Por Wagner Cinelli de Paula Freitas*
Publicado 16/06/2021 05:50
Pedro cresceu em uma família com um pai dominante e uma mãe subserviente. Assistiu por muitas vezes às agressões dele contra ela. Mas, criança que era, restava-lhe o papel de testemunha passiva. Aliás, duplo papel, pois essa violência no seio da família também lhe vitimava.
Pedro cresceu e formou seu próprio núcleo familiar. Ainda que se considere menos bruto que seu pai, também agride sua companheira e, por esse motivo, foi preso em flagrante, vindo a responder à ação penal. Tal e qual seu pai, fez de sua filha de 9 anos de idade a dupla vítima de seus momentos de fúria.
Publicidade
Pedro poderia ser apenas um personagem criado, mas, embora seu nome seja outro, ele existe, pois foi um dos entrevistados pelas historiadoras Elisiane Chaves e Lorena Gill, que escreveram o artigo “Histórias de agressores de mulheres julgados por violência doméstica da Comarca de Pelotas (RS)” (Estudios Históricos – CDHRPyB – Año VIII – Diciembre 2016 – Nº 17 – Uruguay).
Na verdade, existe um batalhão de Pedros, o que é confirmado por números do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, que mostram que, no Brasil, só no ano de 2020, o Ligue 180 e o Disque 100 receberam 105.821 denúncias de violência contra a mulher. Portanto, quase 300 denúncias de violência por dia nessas duas plataformas, fora o que foi registrado diretamente em outros canais, sem contar a denominada cifra oculta, representada pelos casos que não foram reportados.
Publicidade
O inverso não existe ou, se existe, não tem relevância estatística nem sociológica. É que a sociedade tem raízes na família patriarcal, marcada pela dominação do homem e subjugação da mulher. Esse patriarcalismo traz consigo o machismo, que se reflete na língua, na literatura, nas artes, nas instituições, enfim, em todos os lugares.
O machismo se sustenta na desigualdade, na assimetria de poder, e é o pai da violência de gênero. A criança exposta a essas agressões, que assiste à mãe ser martirizada, é candidata a se tornar reprodutora de violência, como algoz, como vítima ou como o adulto omisso que replica os três macacos que representam o “não vejo, não ouço, não falo”.
Publicidade
Pedro, quando criança, respirou a violência doméstica. Adulto, reproduziu esse comportamento. Sua história é exemplo de que não existe violência inventada. Violência é violência reproduzida. Assim, é necessário romper com o ciclo da violência e, para que isso ocorra, precisamos falar sobre esse tema que é antigo, árido e urgente.
O homem que reproduz a crueldade que vivenciou quando menino não precisa se tornar réu em ação penal para começar a pensar. A chave é a alteridade, rejeitando comportamentos que causem mal. Quebrar o ciclo da violência é possível, é necessário e é a porta da esperança para um mundo menos desigual. Um mundo em que o machismo pertença apenas ao passado. Um mundo, portanto, muito melhor para elas. E para eles também.
Publicidade
*É desembargador do TJRJ e autor do livro “Sobre ela: uma história de violência”
Leia mais