Publicado 14/09/2021 06:00 | Atualizado 14/09/2021 16:48
Uma brincadeira que povoou a infância de muitos brasileiros começava com alguém entoando o seguinte enunciado: “Bento que bento é o frade, na boca do forno, tudo que seu mestre mandar, faremos todos! E se não fizermos? Levaremos bolo!”. Brincava-se com as noções de autoridade, de mandos e desmandos. Quem ousasse desafiar o mestre recebia o famoso “bolo”!
Mas o tempo passa e, como adultos, o excesso de outrora já não é mais espirituoso. O frade da brincadeira pode virar um religioso de carne e osso, responsável por um espaço sagrado e, sobretudo, pelos fiéis que ali acorrem buscando conectar-se com Deus.
Assim é com o monumento do Cristo Redentor, maior vitrine religiosa e turística de nosso país, marca registrada que nos faz ser conhecidos no mundo inteiro. Altaneiro no cume do Morro do Corcovado, com seus braços abertos, recorda-nos da vocação nacional para, em seu caldeirão multicultural e plurirreligioso, ser lugar de acolhimento a todos.
Por isso, recentes fatos de indevida restrição à liberdade religiosa da comunidade religiosa católica por parte da autarquia federal Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) acendem uma luz de alerta sobre o estágio do respeito à liberdade religiosa entre nós.
O monumento é um santuário católico inaugurado em 1931 contendo uma capela em sua base e não pertence ao governo federal, mas à Arquidiocese Católica do Rio de Janeiro. Foi construído como resultado das doações e esforços de fiéis católicos, tendo o governo federal, em 1934, feito a transferência de domínio útil da área do alto do Corcovado à Arquidiocese.
Desde então, seus elevados custos de manutenção, atualmente na casa dos milhões de reais, recaem sobre a Igreja Católica. A Arquidiocese do Rio não tem participação nos caríssimos ingressos cobrados para acesso ao monumento, nem recebe hoje qualquer auxílio ou repasse por parte do ICMBio para a conservação do Cristo Redentor. Isso é assunto a ser corrigido, ainda que se limite o repasse para uso de manutenção e divulgação do monumento.
Há 90 anos de posse mansa e pacífica do espaço por parte da Igreja Católica do Rio de Janeiro. Porém, por ser necessário, para acessar o monumento, passar por estrada pertencente ao Parque Nacional da Tijuca, o ICMBio se sente legitimado a realizar ingerências totalmente indevidas nas atividades no Santuário, apesar de a Arquidiocese ter regular direito de servidão de passagem.
A gota d’água ocorreu no último dia 11 de setembro, em que o responsável pelo Santuário, padre Omar Raposo, juntamente com criança, pais e padrinhos, tiveram acesso negado pelo ICM-Bio para a celebração de um batismo, sendo obrigados a esperar duas horas até que o bom senso prevalecesse e fosse permitida a cerimônia religiosa por algum burocrata que talvez desconheça melhor a situação do local.
As investidas contra a manifestação religiosa católica ali não são novas. Certa feita, um padre pretendia fazer uma peregrinação de madrugada até o monumento com alguns fiéis para um momento de oração aos pés do Cristo Redentor. Como ninguém é de ferro, após a oração, haveria um café da manhã para os fiéis reunidos, fato corriqueiro em qualquer comunidade religiosa: após a oração, o congraçamento entre os fiéis.
A autorização, contudo, foi-lhe negada e, pasmem, sob argumentos teológicos: segundo o servidor público que indeferiu o pedido, o “evento” apresentava apenas “um aspecto de cunho religioso não relacionado diretamente às práticas e ritos sacramentais católicos (sendo uma celebração ao amanhecer com realização de oração)”.
Veja-se o inusitado da situação: um servidor público quis ensinar o “vigário a rezar Missa”, pretendendo dizer o que é ou não uma atividade religiosa católica relevante. Fica a pergunta: pode um agente público valer-se de suas impressões teológicas sobre as cerimônias católicas (ou quaisquer outras) como justificativa para negar a realização de um ato religioso? E onde ficam o Artigo 5º, VI e o Artigo 19, I da nossa Constituição, a garantir a liberdade religiosa e a proibir ao poder público embaraçar o funcionamento dos cultos religiosos?
Numa famosa passagem do Evangelho, Jesus ensina: “Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus”. Ora, se o governo federal transferiu o domínio útil da área à Igreja Católica, não pode agora querer voltar atrás, quase um século depois, ainda mais imiscuindo-se em detalhes da gestão religiosa do templo.
Retomando o tema inicial, a arbitrariedade do “mestre” do jogo “Bento que bento” era tolerável na fantasia, mas na democracia não, pois no mundo real os despropósitos tornam-se concretos e vivos. O “mestre” que pode mandar e faremos todos é a Constituição Federal e as leis.
E que o “frade” possa subir o monte quantas vezes forem necessárias, só ou acompanhado, para desde o alto abençoar a Cidade Maravilhosa, que repousa sob os olhos benevolentes do Cristo Redentor, ou aqueles que assim desejarem, sob a proteção tanto de Deus quanto dos direitos individuais que nos protegem.
William Douglas é desembargador federal no TRF2, professor universitário e pastor evangélico.
Vítor Pimentel Pereira é padre católico e diretor da União dos Juristas Católicos do Rio de Janeiro.
Ambos são membros do Grupo Inter-Religioso pelo Diálogo e pela Paz.
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