Pedro Serrano Divulgação
Publicado 08/11/2021 06:00
O debate sobre as liberdades de expressão tem sido bastante recorrente, sobretudo no Judiciário e na mídia, por razões cada vez menos nobres. Paradoxalmente, sempre que um intolerante avança o sinal sobre a liberdade do outro, recorre à reivindicação do seu próprio direito de livre expressão para assim fazê-lo. O caso recente do jogador de vôlei Maurício Souza, que repudiou o beijo de dois homens em uma história em quadrinhos, é emblemático disso.
E nessa eterna confusão entre o que é e o que não é liberdade de expressão, é sempre importante que os critérios de distinção sejam colocados de forma clara, com base no material objetivo do conhecimento jurídico, para que não se incorra em arbitrariedades. Isso é possível, inclusive, porque esses limites estão estabelecidos na nossa Constituição.
No campo da política, a liberdade de expressão é um valor fundamental e deve ser ampla. A crítica ao sistema político, aos agentes públicos, ao Judiciário e às suas decisões não podem ser tolhidas, pois do contrário estaremos ferindo gravemente a democracia. A crítica, nesse contexto, é importante, inclusive, para conter e evitar abusos e até mesmo para que se possa corrigi-los.
Por outro lado, ferimos a democracia também quando ampliamos indevidamente o conceito de liberdade de expressão, e é isso que comumente ocorre quando relacionado às minorias. Neste campo, o que prevalece é o princípio constitucional da tolerância e o da proteção a esses grupos. O discurso que constrange uma pessoa pela sua orientação sexual é um discurso violento em si, porque agride a tolerância.
E tolerância não é um valor abstrato, como muitos querem crer, mas uma imposição normativa. Tolerância não é opcional; é norma constitucional, ou seja, é obrigação de cada um de nós observar esse princípio tanto quanto qualquer outro contido na Lei Maior do país. As constituições elaboradas no pós-guerra, chamadas de constituições rígidas e antimajoritárias, têm justamente o papel de proteger aqueles mais vulneráveis socialmente.
Democracia não é um regime de anjos. É um regime que impõe condutas, que usa da força do Estado para impor seus princípios e valores. Quem não quiser ser tolerante, deve se sujeitar às sanções penais. Importante lembrar que todos nós somos minoria em algum território da existência, portanto proteger as minorias significa proteger a todos.
Voltando às distinções, a expressão é ampla para se criticar no campo da política, mas não no campo das minorias porque o programa normativo incide de forma diferente de acordo com a situação fática e o ambiente.
O discurso que rejeita a existência das minorias na sociedade, de forma implícita ou explícita, seja pela sua desvalorização, seja buscando impedir a livre expressão dos seus afetos, não pode ser concebido como exercício da liberdade de expressão. O discurso do jogador Maurício não foi de livre expressão, mas de livre opressão. O que ele manifestou foi o desejo de uma ação social, cultural e até estatal de opressão a algo que ele vê como errado ou pecaminoso. Ele pode considerar pecado a manifestação do afeto entre dois homens na crença íntima dele, mas não na sociedade.
Na sociedade, a mesma liberdade de expressão afetiva garantida a uma pessoa heterossexual deve ser assegurada a uma pessoa gay. Pela mesma razão que admitimos que um super-herói beije sua namorada em uma história de quadrinhos, devemos aceitar que o filho do Superman beije outro homem. Até por homenagem ao valor da igualdade, muito caro a todos nós, não podemos aceitar que uma expressão de afetividade seja considerada legítima, e a outra não.
É um grande avanço que o afeto entre dois homens apareça em uma história de super-herói tão popular. Roland Barthes observa na introdução de seu Fragmentos de um discurso amoroso que, em certas culturas africanas, a pessoa apaixonada usa trajes diferentes das demais. A paixão exige expressão, pois somos seres de linguagem que exprimimos nossos afetos. A arte e a literatura são em grande parte feitas dessa matéria, pois se trata de um valor muito importante do ser humano. O que esse quadrinho defende, em primeiro lugar, é o direito de exprimir afeto – um elemento essencial da dignidade humana.
Ao performar um discurso agressivo em relação à manifestação de afetividade entre dois homens, o jogador elaborou um discurso de ódio – o que é crime na nossa ordem jurídica. Em síntese, o direito à liberdade de expressão não pode ser usado para cometer crimes contra a tolerância, contra a liberdade de expressão afetiva das minorias e muito menos para estimular o ódio contra segmentos oprimidos da sociedade.
O direito à livre expressão não é apenas de pensamento, mas também de afeto. Somos seres afetivos e temos não só o direito de viver o amor, mas também de expressá-lo. O que a livre opressão confundida com livre expressão quer é impedir que as minorias manifestem plenamente sua afetividade.


Pedro Estevam Serrano é Bacharel, Mestre e Doutor em Direito do Estado pela PUC/SP com Pós-Doutoramento em Teoria Geral do Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, em Ciência Política pelo Institut Catholique de Paris e em Direito Público pela Université Paris Nanterre; Professor de Direito Constitucional e Teoria Geral do Direito na graduação , mestrado e doutorado da PUC/SP, sócio do escritório "Serrano, Hideo e Medeiros Advogados
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